Às vezes, me pergunto: se cada país tem o governo que merece, como muitos dizem, não é crível que o mesmo também se aplique à imprensa? Afinal, quem elege maus governantes, prestigia políticos trambiqueiros e deixa de cumprir com as obrigações mais comezinhas – como obedecer às leis de trânsito, por exemplo, que no final de 2007 provocou recordes de acidentes – que autoridade tem para exigir imparcialidade e isenção de quem quer que seja? Mesmo de um usual saco de pancadas, como a imprensa? Obviamente, é muito mais cômodo cobrar dos outros e transferir a responsabilidade das coisas que deixamos de fazer, seja tirando o corpo fora, ou mediante o famoso jeitinho brasileiro. Com o agravante de que a militância político-ideológica não comporta a devida autocrítica, como estamos cansados de constatar aqui mesmo neste Observatório.
Pensei em encerrar o ano com um balanço do desempenho midiático, mas logo me dei conta de que, além da chatice da empreitada, é o que todo mundo vai fazer nesse período normalmente ocioso. De modo que vou terminar o ano do jeito que comecei: contestando os críticos sistemáticos da mídia e seu anacrônico apostolado anticapitalista para quem tudo se enquadra no antiquado rótulo de esquerda ou direita, a tal lógica binária que o advogado Ricardo Camargo ainda outro dia dissecou com a erudição de sempre [ver ‘O rei, o caudilho e a lógica binária‘ e ‘A lógica binária, o aquecimento global e o petróleo‘]. Sem deixar de endossar as ressalvas à mídia, é bom que se diga, para que o iminente causídico não pense que o evoco para recrutá-lo a mesma tese. Que por sinal, reconheço, nem é politicamente lá muito defensável.
Antiga dívida, resgatada
Seja como for, o que muita gente parece ou finge não entender é que, embora o OI tenha sido criado para fiscalizar a mídia, isso não significada que se deva endossar tacitamente e aceitar como verdadeiras todas as críticas e objeções normalmente aqui feitas, seja por parte dos escribas da casa e colaboradores, como pelos leitores. Assim como não se pode acreditar em tudo que a imprensa divulga, também não se justifica a rejeição automática e unilateral que muitos manifestam, pelos mais diversos motivos, e em especial em função da verdadeira lavagem cerebral promovida pela doutrinação político-ideológica – pela qual ser de esquerda implica ser contra a imprensa, tradicional representante do capitalismo, das oligarquias e forças vigentes.
Não é à toa que a tônica aqui reinante são os embates acalorados com a militância intransigente e empedernida de uma esquerda que se julga monopolizadora do bem e da justiça, cujo radicalismo rejeita qualquer tipo de diálogo, e muito menos contestações, invariavelmente alvo das grosseiras desqualificações de praxe. O que, de minha parte, com os sábios versos do grande Mário Quintana em mente (‘Perdoa… és cristão… bem o compreendo/ é mais cômodo, em suma/ Não desculpas, porém, coisa nenhuma/ que eles bem sabem o que estão fazendo…’), não impediu que chegasse ao final do ano sinceramente gratificado pelo duro a valioso aprendizado frente a essa artilharia pesada e no que tange a pelo menos um artigo em especial, ‘Um jornal para cardíacos‘, sobre a letárgica A Tribuna de Santos, com uma antiga dívida, por assim dizer, resgatada.
Orgia de emendas parlamentares
É também em meio a uma até inusitada camaradagem, no habitualmente tenso relacionamento político-midiático, que o ano se encerra . Em parte, pelo natural relaxamento inerente ao período, mas principalmente pela postergação dos assuntos que devem reacender as discussões logo no começo do ano. Notadamente, a questão envolvendo o remanejamento de recursos orçamentários para suprir a perda dos 40 bilhões de reais previstos da finada CPMF, e a respectiva – e aparentemente inevitável – ação no sentido de repor, ao menos em parte, uma receita tida como vital para alguns setores, como a saúde, que receberia metade desse montante.
Como o presidente Lula tem descartado a hipótese de aumento de impostos e mesmo outras taxações do gênero, a grande expectativa para o início de 2008 sem dúvida envolve o comportamento da economia a partir de uma forçosa contenção de gastos e investimentos, com uma aparentemente inevitável repercussão no nível de crescimento previsto para o ano. E é aí que o governo, como se diz no jargão futebolístico, terá que efetivamente dizer a que veio.
Não que as possíveis adversidades se afigurem como uma ameaça em potencial ao prestígio de Lula, blindado como está pelos programas assistencialistas que comprovadamente sustentam, e quiçá eternizem, sua popularidade. A menos que algum cataclisma sobrevenha, ele já deu mostras de não só ter aprendido os macetes do cargo, como de estar ciente daquilo que pode e não pode fazer. E o que muita gente interpretou como uma derrota pessoal, a derrubada da CPMF, não é de duvidar que até esse percalço poderá vir a ser benéfico, na medida em que provavelmente refreará os aumentos de gastos com o funcionalismo público, cujo quadro aumentou em 300 mil contratações desde que Lula assumiu, além de conter a tradicional orgia de emendas parlamentares, previstas em 19 bilhões, segundo o que foi noticiado.
Fiscalização e cobrança
Obviamente, não será uma tarefa simples revisar o orçamento de maneira a acomodar os muitos interesses em jogo, inclusive – e principalmente – os de ordem eleitoreira, já que 2008 é ano de eleições municipais e, certamente, de recrudescimento das articulações rumo à sucessão presidencial de 2010. Por mais que o momento recomende austeridade, não deixará de ser um desafio para Lula manter as coisas sob controle em meio as inevitáveis pressões, não só da sociedade, com seus problemas crônicos em praticamente todas as áreas, como da própria oposição, que finalmente parece ter se reencontrado no episódio da derrubada da CPMF.
Resta saber se não terá sido uma mera vitória de Pirro, como alguns já escreveram.
Esperemos que não, pois acima dos interesses e das diferenças político-ideológicas, seria uma lástima que o país sofresse algum tipo de retrocesso após os avanços que Lula, inegavelmente, tem sabido consolidar.
Nesse sentido, o ideal seria que tanto oposição como imprensa estivessem cientes de que sua missão vai muito além de torcer contra e criar artifícios que possam comprometer o ainda precário crescimento do país. O que se espera deles é que exerçam com zelo e responsabilidade a função de fiscalização e cobrança que lhes compete, até para que não acabem fornecendo a uma reconhecida raposa política como Lula a melhor das desculpas para não cumprir com as metas estabelecidas e reiteradamente prometidas. Ou alguém duvida que a extinção da CPMF não será usada para justificar as prováveis agruras de 2008?
Quem viver, verá.
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Jornalista, Santos, SP