Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia (1998), em argumentação muito interessante em seu mais recente livro, The Idea of Justice (A ideia de Justiça, 2009, não publicado no Brasil) [Amartya Sen, The Idea of Justice, The Belknap Press of Harvard University Press, cap. 7], retoma a ideia de ‘ilusão objetiva’, avançada por Karl Marx (1818-1883) em alguns de seus manuscritos filosóficos e econômicos para caracterizar o enviesamento de algumas percepções correntes na sociedade indiana. O arrazoado é arrebatador.
Ele demonstra, primeiramente, que em Kerala, o estado que tem a maior expectativa de vida a partir do nascimento dentre os estados indianos – ultrapassando, inclusive, a da China e aproximando-se à europeia – tem também as mais altas taxas de morbidade referida (ou auto-declarada) do país. Já estados como Bihar ou Uttar Padresh, que têm uma expectativa de vida bastante baixa, contam também com uma taxa baixíssima de morbidade referida. Ora, um exame apressado tenderia a analisar as taxas de morbidade auto-declaradas como efeitos de mero subjetivismo, ou erros acidentais de pesquisa, uma vez que, na realidade, em Kerala se vive bastante, o que tornaria problemática a ideia da alta incidência de doenças entre a população. Nesse ponto, assevera Amartya Sen, a noção de ‘ilusão objetiva’ pode ajudar.
Como argumenta o economista, Kerala também é o estado com as mais altas taxas de alfabetização (incluindo alfabetização feminina) indianas e tem um dos mais extensivos sistemas de saúde pública. Portanto, prossegue, em Kerala há uma consciência muito maior da possibilidade de ficar doente e da necessidade de procurar ajuda médica para tratar-se. Ou seja, as próprias ideias e ações que ajudaram a diminuir a mortalidade nesse estado ajudaram, também, a apurar a percepção das pessoas em relação às enfermidades (reais ou possíveis). Já em Bihar e Uttar Padresh, estados com baixas taxas de alfabetização e mal servidos de serviços públicos de saúde, a população tem menores possibilidades de perceber os distúrbios que os acometem e cercam.
O discurso da ‘democracia racial’
Assim, Sen demonstra que a ilusão da baixa morbidade em estados socialmente subdesenvolvidos (socially backward states) na Índia tem, de fato, uma base objetiva – uma base posicionalmente objetiva (positionally objective basis). Resta claro, para ele (e para mim), que cientistas sociais dificilmente poderiam caracterizar essas percepções como ‘caprichosas e subjetivas’, ainda que incorretas; isto nos leva à questão: em que essa constatação se relaciona com o Brasil?
Vivemos, durante muito tempo, sob a égide do pensamento estruturante de ‘democracia racial’. Ainda hoje, diz Ali Kamel, diretor de jornalismo da maior rede de televisão nacional [Ali Kamel, Não somos racistas, Editora Nova Fronteira, p. 40]: ‘[…] Acredito que majoritariamente ainda somos uma nação que acredita nas virtudes da nossa miscigenação, da convivência harmoniosa entre todas as cores e nas vantagens, imensas vantagens, de sermos um país em que os racistas, quando existem, envergonham-se do próprio racismo’ (grifo meu). Demóstenes Torres, senador pelo DEM e presidente de uma das comissões mais importantes do Senado, a Comissão de Constituição e Justiça, ecoa o mesmo discurso [artigo de Demóstenes Torres publicado no Globo (12/03/10), ‘Raça e Ira‘, reproduzido no blog de Reinaldo Azevedo. E minha resposta, publicada neste Observatório; ou, eu diria, a mesma ‘ilusão objetiva’.
Que base sustenta a inexistência de racismo?
Vejam, se a pobreza é, como diz Kamel, ‘a chaga renitente do Brasil’ – e a pobreza não escolher cor – o que explica o fato de que ‘os níveis educacionais da população preta e parda (para usar a classificação do IBGE) são muito mais baixos do que o da população branca e, quando a educação é semelhante, a situação dos pretos e pardos é pior’ [Simon Schwartzman, entrevista à jornalista Ciça Guedes, de O Globo, sobre o livro As Causas da Pobreza (Rio de Janeiro, FGV, 2004), ver aqui]? Em outra pesquisa iluminadora, e aparentemente negligenciada, a antropóloga Lília Schwarcz também aponta dados emblemáticos: ‘97% dos entrevistados afirmaram não ter preconceito. Mas, ao serem perguntados se conheciam pessoas e situações que revelavam a discriminação racial no país, 98% responderam com um sonoro `sim´. A conclusão informal era que todo brasileiro parece se sentir como uma `ilha de democracia racial´, cercado de racistas por todos os lados’ [Lília Schwarz. Entrevista. ‘Quase pretos, quase brancos’, ver aqui].
Ora, se a ilusão objetiva depende das posições observacionais que os atores ou grupos sociais ocupam, nublando a capacidade de exame para fatos verificáveis após sério escrutínio, fica a questão: qual seria a base objetiva – ainda que profundamente paroquial – que sustenta o gritante desvanecimento da existência de racismo em nosso país?
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Historiador, São Luís, MA