Incrível, aterrador: o 16º capítulo da serie histórica “Jornais em Pauta”, publicada quinzenalmente pelo Valor Econômico (ver “Um atraso de três séculos“), parece ter sido montado segundo os paradigmas do Dr. Joseph Goebbels, zelosamente imitados pela Academia de Ciências da ex-URSS e inspirados no patriarca do conservadorismo e do fascismo, Joseph de Maistre (1753-1821).
A surpreendente tese: quem impediu o estabelecimento de tipografias e jornais no Brasil antes de 1808 foi a Coroa, o Estado português. Não houve censura episcopal, não houve censura inquisitorial, não houve nenhum “Rol de Livros Proibidos”, não houve Inquisição. O sanguinário aparelho repressor chamado Santo Ofício estabelecido em 1536 e mantido até 1821 em Portugal e territórios ultramarinos é pura ficção. Os cardeais-inquisidores não existiram, os comissários não tinham poder para examinar os livros que chegavam nos navios, a monarquia absolutista portuguesa era a única responsável pelo que poderia ser ensinado e difundido.
A fabricação da mentira torna-se cada vez mais sofisticada não por causa das novas tecnologias per se, mas porque estas tornam as pessoas cada vez menos interessadas em absorver conhecimentos.
Vocação censória
O autor da proeza revisionista e negacionista publicada num dos mais sofisticados suplementos culturais da imprensa brasileira (“Eu&Fim de Semana”, 28/10) valeu-se de um engenhoso e perverso artifício retórico: como na América espanhola as tipografias foram instaladas a partir do século 16 (a primeira, no México, em 1583), o déficit de liberdade na América portuguesa só pode ser atribuído à Corte.
Grande parte do texto, cerca de dois terços, está maliciosamente montado em cima de citações de eminentes historiadores patrícios, genialmente manipuladas para reforçar a ideia de que a Coroa portuguesa é a única vilã do nosso atraso intelectual e jornalístico.
Difícil acreditar que na vasta bibliografia de Sérgio Buarque de Holanda e de Nelson Werneck Sodré não conste qualquer referência ao protagonismo do Santo Ofício (portanto, da igreja católica) no controle dos corações e mentes dos brasileiros e brazilienses. Pinçar na Sociologia da Imprensa Brasileira, de José Marques de Melo, a frase de que no Brasil colonial não havia tipografias “porque não eram necessárias” é, na melhor das hipóteses, um recurso capcioso.
Isabel Lustosa é, hoje, a mais diligente e esmerada historiadora da imprensa brasileira, coeditora dos 31 volumes com a reprodução integral do Correio Braziliense e valiosos estudos sobre Hipólito da Costa. Dela, os editores de Valor só encontraram um conceito digno de ser incluído no seu seriado quinzenal: “O Brasil era um dos poucos países do mundo, excetuados os da África e Ásia, que não produziam palavra impressa”.
Onde está dito que a culpa do atraso foi exclusivamente da Coroa? Onde exime ela o Santo Ofício de ser a matriz da nossa vocação censória? Este tipo de trambique argumentativo ficaria muito bem num boletim do Opus Dei, mas discrepa num veículo destinado à formação da elite empresarial brasileira.
“Despotismo esclarecido”
O autor (ou autores) ignora(m) que a Inquisição espanhola, diferentemente da portuguesa, era menos centralizada e menos burocratizada. O Santo Ofício lusitano manteve apenas um tribunal fora do território continental (em Goa, Índia); o espanhol permitiu a instalação de três filiais no Novo Mundo (México, Cartagena, Lima) e, graças à fiscalização descentralizada, podia se dar ao luxo de autorizar a instalação de tipografias para a impressão de obras evangelizadoras, criação de universidades e circulação de periódicos a partir do século 17.
As doutrinas que inspiravam as duas entidades inquisitoriais eram as mesmas, colaboravam ativamente entre si (como atesta o caso da loucura e morte do santista Bartolomeu de Gusmão, o Padre Voador), mas as mentalidades eram diferentes. A Espanha era uma potência europeia e o seu império global deveria contar com uma flexibilidade administrativa que o mirrado reino português só adotou quando a família real fugiu para o Brasil.
Quem encarcerou o padre Antonio Vieira não foi a Coroa portuguesa, mas a Inquisição portuguesa. Quem mandou prender e depois executar o comediógrafo – nascido no Rio de Janeiro – Antonio José da Silva, “O Judeu”, não foi D. João V (satirizado na ópera O Anfitrião, montada em 1736), mas o cardeal inquisidor D. Nuno da Cunha, por meio de uma ordem verbal (como está em seu processo). Quem decidiu que fosse executado num auto da fé não foi a justiça secular, mas os inquisidores que lhe ofereceram o direito de escolher entre o garrote e a fogueira.
Aqui, na colônia portuguesa, bispos e comissários do Santo Ofício mandavam e desmandavam, os governadores obedeciam: cuidavam de defender o território, proteger riquezas e cobrar impostos. O resto ficava por conta dos Familiares do Santo Ofício e, sobretudo, do sistema de delações oriundo dos confessionários.
O quadro modificou-se quando esse despotismo clerical foi substituído pelo “despotismo esclarecido” do Marquês de Pombal (1750). Tarde demais, o país estava atrasado 250 anos.
Fim do embargo
O bravo historiador e o prestigioso veículo que ousaram quebrar o tabu relativo à história da imprensa brasileira conseguiram a façanha de manter sob sigilo absoluto, ao longo de 32 semanas consecutivas, o nome do primeiro periódico a circular sem censura no Brasil e em Portugal, o Correio Braziliense. O nome de seu editor-redator, Hipólito da Costa – o patriarca da imprensa brasileira –, até o fascículo 16 só foi mencionado, de passagem e esguelha, uma única vez. Recorde de secretismo que só encontra rival nas ordens de prisão determinadas pelos tribunais do Santo Ofício.
Hipólito da Costa era funcionário da Coroa, mas por ser maçom foi preso pela Inquisição lisboeta (1802). O relato que publicou em português e inglês sobre os interrogatórios a que foi submetido é uma arrasadora denúncia contra os métodos medievais empregados pelos esbirros inquisitoriais (Narrativa da Perseguição de Hipólito José da Costa, dois volumes, Londres, 1811).
O desenvolvimento do Brasil atrasou unicamente por conta do atraso da teocracia portuguesa. A melhor prova está no episódio que resultou no desmantelamento de uma tipografia no Rio de Janeiro (1747-1749) pertencente a um dos melhores impressores portugueses, Antonio Isidoro da Fonseca, misteriosamente transferido para a capital da colônia. Se essa oficina continuasse a sua atividade, a história da multiplicação das ideias no Brasil e a própria história política do país seriam drasticamente diferentes. Para melhor.
O estúpido e devasso D. João V ainda reinava, quem deu a ordem foi o Santo Ofício português, quem a recebeu e executou foi o respectivo comissário que convocou o desgraçado impressor para dizer-lhe que não poderia editar livros e outros escritos.
O documento que confirma a truculência [ver abaixo] foi encontrado por este observador nos “Cadernos do Promotor da Inquisição de Lisboa”. Publicado e analisado em livro (Em Nome da Fé, Editora Perspectiva, 1999), demoradamente exibido no documentário de Silvio Tendler (Preto no Branco – A censura antes da imprensa) e extensamente discutido na série de três programas do Observatório da Imprensa que comemorou os 200 anos da imprensa brasileira (maio-setembro de 2008) [ver textos sobre os programas aqui, aqui e aqui] .
Valor não publicou um equívoco, publicou uma mistificação. Não foi acidental, foi determinação das esferas superiores – ou inspiração divina –, as mesmas que decidiram há três anos que não se devia comemorar o bicentenário da imprensa brasileira para não lembrar o obscurantismo religioso que produziu nossa carência intelectual e jornalística.
Registre-se um avanço: caiu o embargo sobre o assunto. E magicamente descobre-se que o controle religioso aumentou nosso atraso para cinco séculos. Mais precisamente 511 anos (308+200+3). Logo seremos iguais ao Suriname.