Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A intimidação pela Justiça

Novamente o caso do assassinato do repórter Tim Lopes volta à tona, desta vez envolvendo três jornalistas: um repórter, autor do livro-reportagem Dossiê Tim Lopes – Fantástico/Ibope e dois dirigentes sindicais – Elizabeth Costa, ex-presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e atual secretária de Relações Internacionais da entidade, e o ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro (SJPMRJ), Nacif Elias Sobrinhoi, que continua integrando a atual diretoria sindical. O fato remete a uma discussão atual, a do Conselho Federal de Jornalismo.

Por ter escrito um artigo neste Observatório intitulado ‘Uma mancha no sindicalismo brasileiro’ [remissão abaixo], este repórter recebeu uma intimação da 34ª Vara Criminal do Rio de Janeiro para que confirmasse ou desmentisse o teor de suas afirmações naquele texto. Em linhas gerais, o artigo, baseado nas informações contidas no livro Dossiê Tim Lopes – Fantástico/Ibope, acusava a direção da Fenaj e do Sindicato de terem vestido a camisa da TV Globo no episódio do assassinato do repórter da emissora.

Na resposta ao ‘pedido de explicações’, confirmei integralmente o que escrevi. Volto a confirmar neste espaço democrático (um dos poucos na mídia brasileira que permite a discussão de um fato grave e polêmico que envolve um poderoso veículo de imprensa) – ou seja, não tiro uma vírgula do que disse.

Fuga do principal

No artigo em questão, publicado na edição nº 281 do OI (16/6/2004), não há ofensa pessoal alguma aos que por algum motivo se sentiram ofendidos, ao contrário das respostas-justificativas apresentadas nas semanas seguintes por Nacif Elias, Elizabeth Costa e pelo diretor-executivo de jornalismo da Rede Globo Ali Kamel, que, desta vez, preferiu ficar de fora da ação em âmbito judicial.

Aliás, vale assinalar que a melhor forma de desviar o foco das discussões sobre as circunstâncias do assassinato do repórter Tim Lopes é remetê-las para o nível pessoal, como estão fazendo os dois dirigentes sindicais.

Os que conhecem este repórter sabem perfeitamente que não sou ‘mentiroso’ ou ‘carreirista’, como afirmaram os meus acusadores nas respostas ao artigo, demonstrando concretamente que vestiram a carapuça. Apesar das ofensas, achei que não seria certo o caminho da Justiça para responder. Ingressar na Justiça contra colegas de profissão não é prática de jornalista, ainda mais sendo o profissional um sindicalista. No meu entender trata-se de mais uma mancha no sindicalismo brasileiro, como foi a da direção da Fenaj e do SJPMRJ no episódio Tim Lopes.

No caso em questão, o melhor mesmo é mostrar fatos aos leitores. Estes é que farão o julgamento final. Mas já que os meus acusadores, jornalistas como eu, optaram pela via judicial e não por um debate público da matéria, como já propus em outras ocasiões, só me resta apresentar a minha defesa na Justiça. Acredito que este processo criminal, que deverei responder se os dois sindicalistas não recuarem em suas pretensões, automaticamente se tornará um grande foro para o esclarecimento definitivo das dúvidas que pairam sobre o que aconteceu em 2 de junho de 2002, a data fatídica da morte do repórter Tim Lopes.

As dúvidas existentes só podem ser esclarecidas depois que a TV Globo responder uma série de questões que não foram cobradas pela mídia, como, por exemplo, a apresentação de uma testemunha-chave que a emissora diz ter retirado da Favela Cruzeiro sob o pretexto de protegê-la. Esta misteriosa figura desapareceu como por encanto. O mesmo aconteceu com um ‘turista de Cuiabá’, que teria testemunhado e/ou filmado a prisão de Tim Lopes num suposto baile funk. Mas deixemos isso para a Justiça.

A título de esclarecimento, convém assinalar que o novo capítulo do caso Tim Lopes não tem nenhuma relação com ‘eleições que mobilizam a categoria dos jornalistas’, como afirmam os dois sindicalistas no arrazoado enviado à 34ª Vara Criminal. Considero lamentável utilizar um argumento como esse, parecendo mais uma estratégia voltada para fugir do principal, o esclarecimento definitivo dos fatos que a TV Globo continua a dever. Agora, por exemplo, não há nenhuma eleição sindical à vista e reafirmo que a diretoria da Fenaj e do SJPMRJ vestiram a camisa da TV Globo no caso Tim Lopes.

Dúvidas pendentes

Este caso, como disse no início deste esclarecimento, remete às polêmicas discussões sobre o Conselho Federal de Jornalistas, ainda mais pelo fato de uma das acusadoras na Justiça contra este repórter integrar o núcleo duro da Fenaj, isto é, a cúpula dirigente da entidade que elaborou o projeto. E se o Conselho estivesse vigente, o que aconteceria? Provavelmente este repórter estaria enfrentando um ‘tribunal de ética’ no Conselho Regional do Rio de Janeiro. O item 1 do artigo primeiro do projeto de lei dispõe que ‘o CFJ e o CRJ têm como atribuição orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de jornalista e atividades de jornalismo, zelar pela fiel observância dos princípios da ética e disciplina da classe em todo o território nacional, bem como pugnar pelo direito à livre informação plural e pelo aperfeiçoamento do jornalismo’. Neste caso, será que as acusações apresentadas na Justiça se enquadrariam no item 1? A resposta não é difícil.

Como o artigo 9º do projeto do CFJ estipula que ‘o processo disciplinar pode ser instaurado de ofício ou mediante apresentação de qualquer pessoa interessada ou entidades de classe dos jornalistas’, não seria surpresa o julgamento da acusação de dois sindicalistas contra um trabalhador (jornalista).E quem seriam os julgadores? Os integrantes do Conselho Regional ou um júri especialmente designado? E quem integraria o Conselho? Se fosse agora, digamos logo em seguida à entrada em vigor da lei formulada pela Fenaj?

Segundo o artigo 17 do projeto encaminhado ao Congresso, ‘a primeira composição do CFJ será provisória, contando com dez jornalistas profissionais efetivos e dez suplentes, indicados pelo Conselho de Representantes da Federação Nacional dos Jornalistas Profissionais, e tomará posse em até sessenta dias após a promulgação desta lei’. E, vejam bem: ‘o mandato dos conselheiros provisórios a que se refere este artigo terá a duração necessária para organizar a eleição de cinco CRJ; caso ultrapasse dois anos, o Conselho de Representantes da Federação Nacional dos Jornalistas Profissionais indicará nova composição, nos moldes do caput, para ultimar a eleição dos cinco Conselhos Regionais’.

As dúvidas sobre o Conselho não param por aí .É o caso de se perguntar: nesta matéria específica do episódio Tim Lopes, apenas o jornalista que escreveu a matéria estaria sendo julgado? E a empregadora, a TV Globo, onde entraria na história? Será que o tal ‘tribunal de ética’ só se ocuparia de julgar um trabalhador (jornalista), deixando de lado o verdadeiro causador de toda a polêmica, a TV Globo? Será que mais uma vez o empresário sairia incólume? Afinal, qual exatamente seria o objetivo do Conselho? Vigiar figuras físicas e deixar de lado o empresariado?

‘Comunicados oficiais’

As dúvidas aumentam, sobretudo para quem leu recentemente, na Folha de S. Paulo 18/8/04, pág. 3), um artigo assinado a quatro mãos pelo atual presidente da Fenaj Sergio Murillo e pelo primeiro-secretário da entidade, Aloísio Lopes. Diziam eles, de uma forma absolutamente contraditória:

‘A proposta de criar o Conselho Federal de Jornalismo é exclusivamente para fiscalizar a profissão de jornalista, cuja atividade tem uma interferência direta na vida das pessoas, na cultura e na política. Não pretende o CFJ fiscalizar as empresas (para isso já existe legislação própria) tampouco interferir na linha editorial dos veículos de comunicação.’

Quer dizer: na prática essa afirmativa anula as justificativas dadas mais adiante, no mesmo artigo, de que ‘o cumprimento do Código de Ética do Jornalista, que será objeto de fiscalização do futuro conselho, é uma proteção para o próprio jornalista contra posturas inadequadas dos donos da mídia’.

Pelo visto, somente as acusações infundadas de dois sindicalistas, por sinal defensores incondicionais do Conselho Federal de Jornalismo, entrariam em pauta no tribunal. Então, fica de novo a pergunta: qual seria exatamente a função do Conselho? Em que pauta o Conselho discutiria, por exemplo, a questão do controle social da mídia ou ainda o combate ao oligopólio no setor, que se reflete na prática do jornalismo de mercado, que corre atrás do lucro fácil, e responsável também pela mesmice do pensamento único, não admitindo o contraditório? Ah, sim: e nem se falou que esse mesmo jornalismo de mercado é também responsável pela onda de desemprego que assola a categoria.

E, finalmente, já que o secretário de imprensa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Ricardo Kotscho, insiste que ‘democraticamente’ o projeto de lei do CFJ está no Congresso Nacional para a discussão, com a palavra os senhores congressistas. Esperamos que de alguma forma este artigo sirva de reflexão aos representantes do povo. E que se sensibilizem para a discussão de outros problemas que dizem respeito à imprensa, não apenas o controle social da mídia, como também a propriedade cruzada (quando um só grupo empresarial é proprietário de emissoras de rádio, TV e jornal em uma região formando na prática um oligopólio) no setor, que só serve aos senhores barões que não aceitam nenhum tipo de discussão dessa matéria.

Toda vez que se vislumbra algum debate nesse sentido, esses senhores midiáticos repetem o mesmo refrão segundo o qual ‘a liberdade de imprensa corre perigo’ etc. Claro, eles contam com a memória fraca da coletividade, que talvez não se lembre que a maioria dos ‘democratas desde criancinha’ deram todo o apoio à ditadura brasileira, geralmente aceitando sem pestanejar os ‘comunicados oficiais’ enviados às redações. E que também não venham com o argumento de que o foro pertinente para a discussão dos problemas relacionados com a mídia seria o Conselho de Comunicação Social, órgão auxiliar do Senado, que nem poder deliberativo tem.

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Jornalista