Culpa do calor ou da inapetência para discutir questões de princípio, a verdade é que o vigoroso editorial ‘Jornalismo irresponsável’ de O Estado de S.Paulo de terça-feira (7/2, pág. 3) caiu no vazio. Não merecia. [Leia a íntegra do texto no pé desta nota.]
Em primeiro lugar pela importância do veículo em questões relativas à imprensa. Há mais de meio século o jornalão é uma espécie de porta-voz do liberalismo jornalístico: combateu a ditadura Vargas, esteve na vanguarda da redemocratização de 1945 e vocalizou idéias e ideais da SIP (Sociedad Interamericana de Prensa) antes da sua mudança para Miami.
Além do seu aspecto institucional, a peça produzida pela equipe de editorialistas do Estadão contém questões cruciais que exigem reflexão e, principalmente, debate. A ‘guerra santa das charges’ vai além da questão da liberdade de expressão na Europa.
Por isso, antes de examinar os seus desdobramentos é preciso dizer, com toda a clareza, que a série de caricaturas dinamarquesas é incivil – esta é uma palavra chave – porque confronta as bases de tolerância e convivência da sociedade democrática. O terrorismo de militantes islâmicos nada tem a ver com o islamismo enquanto religião. Fé é questão de foro íntimo, o direito às crenças e à descrença é uma conquista da humanidade – não pode sofrer retrocessos.
Mas ao concentrar o fogo exclusivamente nos veículos europeus que reproduziram as caricaturas, o Estadão entregou-se a um fervor algo religioso e esqueceu que há outra irresponsabilidade a ser condenada – a politização da religião.
Pavio aceso
O editorial não pode ser lido nem recortado do momento em que foi publicado: a condenação simultânea das charges pelo governo americano e pelo Vaticano. A quase-teocracia americana (de viés luterano) e a teocracia integral vaticana (de viés católico), apesar de teoricamente opostas, convergiram rapidamente não apenas para denunciar a insolência das charges mas também para sepultar a discussão em torno da politização da fé – assunto-tabu. O Estadão foi na onda.
Daí o flagrante esquecimento da outra irresponsabilidade: a de certos governos médio-orientais (no momento empenhadíssimos num confronto político com a União Européia), que orquestraram as manifestações populares e converteram uma irresponsabilidade jornalística, localizada, em irresponsabilidade institucional globalizada.
Se alguns jornais europeus acenderam o pavio da guerra santa, os governos da Síria (com ramificações no Líbano) e do Irã trouxeram o barril de pólvora para perto dele.
Mistura perigosa
É preciso lembrar que Síria e Irã são estados policiais: nenhuma manifestação pode ocorrer sem prévia autorização das autoridades. As imagens mostradas na televisão são incontestáveis: não se tratou de uma explosão espontânea, mas de marchas organizadas e dirigidas. É preciso lembrar também que os distúrbios antieuropeus não alcançaram a prudente Arábia Saudita (guardiã de Meca e sede do radicalismo wahabita), certamente também insultada pelas charges, mas cuidadosa na reação.
Se, por um lado, a publicação das caricaturas exibe certas fissuras no conceito absoluto da liberdade de expressão, a politização e a midiatização das religiões constituem ameaças não menos perigosas à democracia. Esse perigo não incomoda o Estadão.
Os radares e as baterias do prestigioso jornal aparentemente não estavam sensibilizados para a perigosa mistura de política e religião. Esta mistura, que abala o Oriente Médio, foi aqui minimizada pelo tradicional diário paulista.
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Jornalismo irresponsável
Editorial, copyright O Estado de S. Paulo, 7/2/2006
A fúria desencadeada no mundo árabe-muçulmano pela charge publicada originalmente em setembro em um obscuro jornal dinamarquês e republicada na Noruega, em janeiro, é a resposta que se poderia esperar à monumental irresponsabilidade de quem autorizou a sua publicação. O desenho mostra um iracundo profeta Maomé com um turbante em forma de bomba, a que não falta nem o pavio. Para as multidões que tomaram as ruas no Oriente Médio, queimando embaixadas dinamarquesas e norueguesas, a charge é uma das piores agressões que se poderiam cometer contra a sua religião, que veda taxativamente a representação da efígie de Maomé. O tabu nasceu da sua condenação à idolatria.
Mas, ao acrescentar à caricatura do profeta o símbolo universal da violência indistinta, o desenhista e o seu jornal não se limitaram a escarnecer de um credo. A sua estereotipada mensagem é inequívoca: islamismo e terrorismo são uma coisa só, todo muçulmano é terrorista. A isso se chama islamofobia, uma expressão de hostilidade racial que, como todas as demais, deveria merecer o vivo repúdio do mundo civilizado. É verdade que, em razão do conflito israelense-palestino, a cultura popular nos países muçulmanos vem se encharcando de anti-semitismo. Isso, no entanto, não atenua a ofensa praticada por um órgão de imprensa de um país tido como um dos mais iluminados do mundo.
Pior foi a espantosa decisão de órgãos da imprensa do porte do alemão Die Welt e dos franceses Le Monde e France-Soir de republicar a charge inflamatória para se solidarizar com o Morgenavisen Jyllands-Posten (que por sinal se desculpou pela desfeita) e para afirmar o princípio da liberdade de imprensa – uma raridade nos países muçulmanos. O Ocidente não seria o que é, efetivamente, sem o direito à livre circulação de idéias, opiniões, informações e expressões artísticas. Mesmo esse pilar das sociedades democráticas, porém, não existe no vácuo. Nas palavras do jornal londrino The Guardian, ‘há limites e fronteiras – de gosto, leis, convenções, princípios ou juízos. Nada disso pode ser automaticamente desconsiderado invocando-se o valor maior. O direito de publicar não obriga a fazê-lo’.
Os islâmicos podem ser criticados, como foram por um de seus mais importantes pensadores na Europa, Tariq Ramadan, em entrevista ao Global Viewpoint (transcrita no Estado), por ‘reagir com exageros a provocações’. A onda de violência, estimulada ou aceita por mais de um governo, choca por seu primitivismo. Mas Ramadan também tem razão ao dizer: ‘Será que eu ando por aí insultando as pessoas porque tenho liberdade para isso? Não. Isso se chama responsabilidade cívica’. O problema contém ainda uma dimensão mais profunda, relacionada com as características menos louváveis da cultura ocidental nos dias atuais, associada ao vale-tudo a que se entregaram a mass media e a indústria do entretenimento, degradando a liberdade em libertinagem e licenciosidade.
Curiosamente, veio do Brasil talvez a melhor síntese da crise da charge, tendo como pano de fundo a disseminação da baixaria, sob todas as formas, na chamada ‘civilização do espetáculo’. Falando ao Estado, o xeque Jihad Hassan Hammadeh, radicado em São Paulo, tocou no nervo da questão. ‘O Ocidente perdeu o valor do sagrado’, constatou. ‘Se os ocidentais não respeitam os seus valores, imagine os dos outros.’ De fato, a permissividade midiática e a aversão do jornalismo de tablóide a educar o público se entrelaçam para embotar a capacidade do homem comum ocidental de entender as diferenças culturais que se manifestam especialmente em relação ao ‘valor do sagrado’ em outros ambientes.
Na sexta-feira, o dinamarquês Posten afirma que ‘subestimou o sentimento de muitos muçulmanos sobre seu profeta’ e que, se soubesse das conseqüências, não teria publicado a charge revoltante. O argumento é pobre. Ela não deveria ter sido publicada, mesmo que não fosse previsível a reação que provocou. Primeiro, porque não cabe a um jornal criticar – muito menos escarnecer de – valores culturais com os quais não comunga. Segundo, porque a publicação embutiu a intenção de ofender toda uma parcela da humanidade que se identifica, acima das etnias que a compõem, com um credo religioso. À deliberada profanação de um valor alheio somou-se a estigmatização da cultura que o abriga – quando a islamofobia cresce a olhos vistos na Europa.