Wednesday, 04 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

A liberdade de discordar

Ainda sobre a criação do CFJ, apenas mais uma palavrinha, para não viver o pior dos infernos dantescos reservado àqueles que se abstêm nos momentos de crise. Este Observatório é verdadeiro front contra a guerra autoritária encampada por um governo incompetente que ao menor sinal de ameaça às suas frágeis estruturas tenta mutilar o jornalismo, agredindo o espírito da liberdade de imprensa no bojo da liberdade de expressão e pensamento, pilar dos ideais republicanos, direito inalienável garantido a todos, inclusive a este mesmo governo que sobe às tribunas para dizer suas asneiras sem que possamos reclamar, porque afinal ainda existem alguns que respeitam o direito, seu e dos outros, de expressarem suas idéias, sem censura.

É na questão da liberdade, esse campo minado, que quero tocar. No espaço democrático que se constitui o Observatório da Imprensa temos a liberdade de conhecer opiniões divergentes, elucidativas e críticas como as de Alberto Dines (‘Contra o denuncismo, o peleguismo’) e ingênuas e antipolíticas como a do colega professor Josenildo Guerra (‘Qual liberdade?’), para ficarmos nos exemplos mais extremos. Neste mesmo espaço temos a liberdade de discordar.

Discordo veementemente da opinião do professor, que acredita que já que não temos liberdade, não precisamos mais lutar por ela. Reconheço as amarras que nos impedem de ter um jornalismo autônomo, uma mídia que se constitua de fato um Quarto Poder em defesa do direito público à informação responsável e reconheço também o quanto estamos mal, mas nem isso me autoriza a acreditar que a criação de um Conselho Federal de Jornalismo, nos moldes propostos por uma federação de jornalistas totalmente cooptada por este governo autoritário ou em qualquer outro molde, possa resolver nossos problemas ontológicos.

Se ainda não usufruímos da liberdade necessária para a prática saudável de nosso jornalismo, temos que tê-la como parâmetro perpétuo, como na história das sociedades que, apesar de atoladas na injustiça e na desigualdade, caminham em busca de melhoria, de evolução, e contra a barbárie ainda que ela seja visível.

Lembremos Descartes

Só posso lamentar a ingenuidade ou desinformação do professor, que acredita ser a criação do CFJ, ou de qualquer conselho, uma abertura para um debate democrático, ‘a possibilidade de constituir um fórum no qual as diferentes interpretações sobre o bom e o mau exercício da profissão pudessem ser avaliadas, testadas, provadas ou refutadas’. Até seria bonito se não fosse irreal. Um fórum em que jornalistas, empresários de comunicação e sociedade civil teriam igual direito de participação? Onde e quando, historicamente, isso aconteceu de fato? Em que momento, como bem disse Josenildo Guerra, poderosos da mídia e trabalhadores jornalistas tiveram igual direito de decisão? Vale lembrar a frase muito oportuna do jornalista Mauro Santayana que nos diz que os ‘os poderosos não nos amam. Já é muito quando nos respeitam’.

Uma lida mais cuidadosa no texto do projeto de lei para a criação do CFJ descambaria, irremediavelmente, no artigo 9, inciso primeiro, que reza que os processos disciplinares conduzidos pelo CFJ tramitarão em sigilo, só tendo acesso às informações e documentos as partes e seus defensores, bem ao estilo dos fantasmas do DIP e Dops. Em nenhum momento se fala num fórum público e participativo.

Confundir essa proposta autoritária de conselho com um fórum democrático é, no mínimo, um desrespeito às iniciativas não-governamentais de constituir verdadeiros espaços de cobrança e fiscalização dos atos do Estado e da propriedade privada dos meios de comunicação – esses, sim, carentes de regulação –, como é o caso do Fórum Nacional para a Democratização dos Meios de Comunicação (FNDC), entidade mista de profissionais e civis, que vem desenvolvendo um imprescindível trabalho fiscalizador no caso do socorro financeiro à mídia, o Promídia, outro fiasco que espero não nos esqueçamos no calor desses episódios mais recentes.

Quanto ao ‘problema de método’ que o professor Guerra diz haver entre os argumentos contrários e favoráveis à criação do Conselho de Jornalismo, faltou lembrar que o jornalismo também é fruto de sociedades que caminham para o aprimoramento. O objeto do jornalismo, em suma, é o homem e suas ações, os fatos que o constituem enquanto ser coletivo. Se o homem ainda não alcançou seu ideal ético, o jornalismo pelo menos o coloca na pauta do dia, ainda que avance devagar. Para o mau jornalismo basta o Código Penal punindo os crimes de calúnia, injúria e difamação através da Lei de Imprensa, que é dura, mas é a lei. Não precisamos de conselhos que implantem, em cada um de nós, jornalistas, a tortura do medo, da autocensura, do doutrinamento cego que, como professores, levamos a reboque para as escolas de Jornalismo. Se o problema é de método lembremos Descartes, que nos ensinou que devemos duvidar de todas as evidências. O professor parece que preferiu duvidar da liberdade.

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Jornalista, professora-substituta da Universidade Federal de Sergipe