Liberdade de expressão e respeito ao direito é o que pauta a conduta da mídia nas sociedades seculares e democráticas. Em princípio, a imprensa é livre para enfrentar tabus religiosos de outras culturas, como aquele que proíbe a representação do profeta Maomé.
Mas, convenhamos, uma coisa é desenhar um homem que representa o profeta Maomé, como na maioria das charges publicadas no jornal dinamarquês Jyllands-Posten. Outra é criticar o fanatismo dos terroristas mostrando o profeta Maomé portando um turbante-bomba. Foi essa charge, segundo os chefes religiosos reunidos no Marrocos, que chocou o mundo muçulmano, pois houve ‘associação entre o profeta e atos execráveis, diametralmente opostos à mensagem que o mensageiro de Deus veio trazer’.
O amálgama Islã = terrorismo é indefensável. Será que essa celeuma teria sido evitada se não houvesse o desenho do turbante-bomba? Creio que sim. O que é insuportável para os muçulmanos, fanáticos ou moderados, é representar o profeta do Islã como um terrorista. Isso não é propagar o ódio, disseminar a islamofobia, divulgar uma falsa equação muçulmano = terrorista?
Evitar a provocação não significa submissão aos tabus da religião muçulmana, que proíbe a representação do profeta. Esses tabus religiosos devem valer para os crentes de cada religião, não têm que ser respeitados pelos não-seguidores. OK, todos têm direito de representar Maomé, Cristo ou Jeová e os profetas do judaísmo em charges. Mas associar Maomé, Cristo ou os profetas judeus aos crimes cometidos por seus seguidores é uma coisa totalmente diferente. Estimular a associação do profeta do Islã aos terroristas é um reducionismo racista.
Aliás, a Dinamarca já fora o centro de outro episódio racista anti-Islã. Um jornalista na televisão defendeu o extermínio dos muçulmanos, comparados por ele a um tumor no corpo europeu. Levado à Justiça por representantes da comunidade muçulmana, o jornalista foi condenado.
Maomé de turbante-bomba é uma imagem distorcida e preconceituosa da religião muçulmana. Assim como culpar Jesus Cristo pela Inquisição que matou milhares de pessoas sob tortura ou na fogueira; ou ainda culpar o fundador do cristianismo pelo massacre dos índios americanos; ou, ainda, pela escravidão dos negros africanos por brancos cristãos. O cristianismo, como o judaísmo hoje, também foi usado para justificar ‘guerras santas’ e massacres de massa.
Uma lei liberticida e duas sentenças opostas
A liberdade de expressão deveria ser absoluta num país democrático como a França. Mas a Lei Gayssot, de 13 de julho de 1990, pune toda e qualquer expressão nos meios de comunicação (inclusive livros) que possa ser considerada como incitação ao ódio ou à difamação racial. Grande parte das matérias que lemos na Veja sobre o Islã, preconceituosas e nitidamente racistas, não poderiam ser publicadas em nenhuma revista francesa por causa da Lei Gayssot, que surgiu como uma resposta a livros e textos revisionistas e negacionistas (que negavam o Holocausto) da década de 1980.
Dois casos recentes ilustram muito bem as discussões em torno da Lei Gayssot, combatida por alguns por ser considerada liberticida. O primeiro foi o processo contra Michel Houellebecq, o segundo, contra o sociólogo Edgar Morin.
Houellebecq escreveu:
‘A religião mais babaca é a muçulmana. A leitura do Alcorão deixa a gente arrasado… arrasado’.
Atacado por associações muçulmanas e pela Liga dos Direitos Humanos, o escritor foi inocentado pois a Justiça considerou que sua frase expressa apenas uma crítica a doutrinas religiosas.
Em maio de 2005, o sociólogo Edgar Morin foi condenado pela Justiça francesa por ‘difamação racial e apologia de atos de terrorismo’ por um texto publicado no jornal Le Monde, em 4 de junho de 2002. O que dizia Morin no brilhante artigo ‘Israël-Palestine: le cancer’, assinado por ele, pelo deputado europeu Sami Naïr e pela escritora Danièle Sllenave? Dizia que Ariel Sharon levara Israel a um impasse…
‘…que prosseguiu a colonização nos territórios ocupados e considera como oferta ‘generosa’ uma restituição restrita e parcelada dos territórios com a manutenção das colônias e o controle do vale do rio Jordão’.
Num dos parágrafos do texto lia-se a frase que serviu para instruir o processo:
‘Os judeus, que foram vítimas de uma ordem desumana, impõem agora uma ordem desumana aos palestinos’.
Os autores foram processados pelas associações França-Israel e Advogados sem Fronteiras e acusados de anti-semitismo. O ‘judeu secular’ e humanista Edgar Morin qualificou a acusação de ‘grotesca’.
Uma petição em defesa de Edgar Morin, assinada por alguns dos mais importantes intelectuais e jornalistas franceses – como Jean Baudrillard, Régis Debray e Alain Touraine –, foi publicada dia 24 de junho de 2005 na internet e no jornal Libération. No texto, entre outras coisas, os signatários diziam que ‘se inquietam legitimamente com toda medida que tende a reduzir a liberdade de crítica em relação à política de um Estado, qualquer que seja ele’. Ao fim do processo, juntamente com a pena simbólica de 1 euro por perdas e danos, Morin recebeu uma enxurrada de e-mails ameaçadores de judeus extremistas e teve que pedir proteção à polícia.
Comentando a reação dos judeus extremistas, Morin declarou:
‘Muitos judeus veiculam uma imagem três vezes nobre: a do mártir, do cultivador de terras áridas e a de Davi contra Golias. Ora, hoje são os palestinos que se enquadram nessa imagem tripla e isso alguns judeus não podem suportar. A mídia que mostra isso é taxada de anti-semita’.
Onda de islamofobia se espalha pela Europa
Presidente do Conselho Francês do Culto Muçulmano, Dalil Boubakeur vê no episódio dos desenhos de Maomé um novo sinal da ‘islamofobia contra os muçulmanos e a religião que professam’.
De fato, nos últimos anos, a Europa vem sendo tomada por uma onda de islamofobia que se manifesta em declarações de políticos, artigos na imprensa e livros de ódio racial como o de Oriana Fallaci. A jornalista italiana, que vive em Nova York há mais de dez anos, lançou, em 2002, o livro chamado A raiva e o orgulho, que vendeu mais de 1 milhão de exemplares na Itália. Segundo o olhar raivoso de Fallaci, cada árabe é um pequeno soldado bárbaro de uma cruzada contra a civilização ocidental.
O livro, qualificado de ‘delírio verbal e paranóico’ por uma revista francesa, é um vômito coalhado de ódio contra os filhos de Alá. Editado na França, o panfleto suscitou um longo debate sobre a islamofobia crescente, mas nenhuma entidade tentou retirá-lo de vendas recorrendo à Justiça. Na Itália, somente as pessoas de esquerda protestaram contra o racismo da autora, que vê a Europa ameaçada pela fertilidade dos árabes, ‘que se multiplicam como ratos’. Na Alemanha nazista, o inimigo abjeto era o judeu; para a extrema-direita européia de hoje, são os árabes.
O mundo não é mais o mesmo depois do fatídico 11 de Setembro de 2001. Naquele dia, traumatizados, descobrimos que uma nova era começava. Complexa e desorientadora, essa nova era viu nascer uma curiosidade pela religião muçulmana, em nome da qual alguns terroristas atacaram o World Trade Center. Depois da tragédia, a mídia francesa passou meses publicando reportagens especiais sobre o Islã, seus valores e sua evolução.
A edição nº 2152 da revista Le Nouvel Observateur (2/2/2006) volta à carga com a reportagem de capa intitulada ‘A verdade sobre o Islã na França‘. Se existe uma ‘verdade’ a ser contada é porque ela é ocultada e precisa ser revelada. A liberdade de expressão também pode ser usada para caricaturar e desinformar. Algumas reportagens mostram que os fantasmas sobre os islamistas radicais voltam com força depois da vitória do Hamas na Palestina.
Ao mesmo tempo, políticos como Philippe de Villiers, do Mouvement pour la France, e Jean-Marie Le Pen, do Front National, virtuais candidatos da extrema-direita às eleições presidenciais, denunciam a ‘islamização da França’. A xenofobia da extrema-direita é plenamente compartilhada pelo ministro do interior Nicolas Sarkozy, que anuncia esta semana novas leis de restrição à imigração.
As caricaturas do profeta caíram como uma bomba no islâmico, atiçando um pouco mais a fogueira do ressentimento e do ódio.
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Jornalista