A Queda, de Oliver Hirschbiegel, que tem o subtítulo de ‘os últimos dias de Adolf Hitler’, é um filme assustador.
Na pele do monstro, Bruno Ganz semelha a reencarnação de um dos maiores ditadores que a humanidade já produziu em todos os tempos. É como se a guerra voltasse num pesadelo do qual não conseguíssemos despertar a tempo.
Assisti ao filme com uma amiga. Ao nosso lado, um senhor de porte grave, heráldico, forte, sadio, cujos cabelos brancos de seus oitenta anos tinham sido louros na juventude, continha soluços e chorava baixinho, sem conseguir evitar as lágrimas que lhe escorriam na face vincada de rugas.
A mulher a seu lado deveria ter uns cinqüenta anos, se tantos, e batia a mão no pulso do companheiro – marido, caso, rolo, ficante, amor eventual, mas apenas amigo, não, pois a profusão de carícias e o modo como se achegava a ele na poltrona indicavam que havia laços de fogo entre as duas criaturas. Era morena e bela, estava bem vestida, como o amado, aliás, impecável num terno cinza.
Pontos comuns
Minha amiga e eu saímos dali para um café e dissemos um ao outro que nada tínhamos a comentar, a não ser que o Brasil tinha feito um filme de viés semelhante, provavelmente um dos dez melhores filmes brasileiros em qualquer classificação.
É Aleluia Gretchen, do catarinense Sylvio Back, que desconcertou aqueles que prezavam os espartilhos que espremiam os seios da pátria naquele instante: quem não era de esquerda, éramos de direita, pois não? O filme repelia rótulos fáceis, posto que diretor e roteiristas tinham sido tomados por um fogo apenas: a paixão do conhecimento.
Quem muito se empenha em condenar sem conhecer, acaba absolvendo o que antes condenou com a mesma ausência de reflexão. Olhemos para algumas sinistras figuras do governo atual, aprovando o que antes condenavam, e teremos um exemplo presente.
Que dizer quando se tiverem passado dezenas de anos, como é o caso da ferida cutucada pela pinça de diretores como Oliver Hirschbiegel, Luchino Visconti e Sylvio Back, que ousaram contemplar os fantasmas do neonazismo por mirantes insólitos! O primeiro, agora, nas celebrações dos sessenta anos do fim do conflito; o segundo, com Os Deuses Malditos, em 1969; e o terceiro, em 1976.
Os três têm em comum um mesmo norte: entender o que houve, o que está havendo, o que se passa. Lembram da nossa Florinda Bulcão, rebatizada Florinda Bolkan, ao lado de Helmut Berger na obra de Visconti, mostrando como empresários ganhavam dinheiro com a ascensão do nazismo?
Mas se Aleluia Gretchen e Os Deuses Malditos ensejam vastos comentários, o mesmo não ocorre com A Queda. É um filme que me deixou em silêncio.
Vítima principal
Quem sabe a mudez venha de um tema difícil de comentar: o suicídio. O próprio suicida, quando muito, faz um bilhete lacônico, com exceção de Getúlio Vargas, que fez a mais longa das cartas.
Outra contribuição para o silêncio veio da mídia. Que besteirol é este de considerar ‘lado humano’ os bons tratos à cachorra de estimação, o convívio com a amante e a paciência com as secretárias particulares? Tudo termina em morte violenta! O nazismo é morte. A vida para os nazistas não vale nada, nem a dos outros, nem a deles.
A frieza com que a mulher de Goebbels mata os sete filhos pequenos, antes de suicidar-se na companhia do marido, é o dado mais aterrador.
Tantos mortos já cansaram o nosso olhar. Principalmente pelas mentiras cinematográficas, que nos impuseram terem sido os aliados os grandes heróis daquela guerra.
Uma guerra como aquela só tem vítimas. A principal delas, como sabemos, é a verdade.
***
Este artigo foi publicado também no Jornal do Brasil, em 10/5/2005