O artigo publicado na edição 355 deste Observatório, sob o título ‘Quando faltam a razão e o direito‘, produziu um grande número de comentários no Blog do Noblat, panfleto político de responsabilidade do jornalista que, sob a autoridade de Paulo Cabral, dirigiu o processo de inserção do Correio Braziliense no rol dos jornais mais considerados do país nos anos 1990. Essencialmente, muitos leitores-correligionários se escandalizaram pelo fato de o blog ter sido qualificado como ‘panfleto’.
Na verdade, se fosse possível aos manifestantes observar por cima do muro do seu engajamento, eles teriam entendido que, em seu formato mais comum, os blogs são de fato, e geralmente, panfletos, o que não os diminui. No meio da balbúrdia e destemperos postados por leitores, o jornalista acreano Altino Machado observou lucidamente que ‘muita gente reagiu de modo precipitado por causa da palavra panfleto no artigo. Bobagem, puríssima bobagem. O que significa panfleto? O Aurélio define como ‘pequeno escrito polêmico ou satírico, em estilo veemente’. Os blogs em geral são isso mesmo: coleções de artigos veementes, opiniões, notas selecionadas conforme o gosto do autor, com seus comentários pessoais. Ou são apenas coleções de informes de segunda mão, como clippings eletrônicos, também selecionados conforme as preferências do dono.
A imprensa moderna deve muito a esse gênero de comunicação. Em 1900, durante a Feira de Paris, circularam centenas de panfletos e muitos deles anteciparam questões importantes para o estudo da tecnologia e da sociedade moderna, que se inaugurava ali. Um deles, em especial, intitulado O automóvel é a guerra, é um primor de análise sobre o impacto das novas tecnologias sobre a sociedade e foi citado numa das obras do ensaísta Walter Benjamin. Alguns daqueles panfletos até viraram jornais ou revistas.
Ricardo Noblat não foi o primeiro, mas aparentemente é o mais bem-sucedido jornalista blogueiro no Brasil. Tem todo o direito e méritos para tocar seu negócio. Afinal, trata-se apenas de escolher o tamanho do contêiner adequado ao seu ego. Responde positiva ou negativamente a suas mensagens quem quiser. Como panfletista, o grau de comedimento ou agressividade de suas opiniões é questão de foro íntimo do autor. Também há blogs de petistas, sites de aluguel, redes de adoradores de abóboras, blogs de corintianos e de anticorintianos
Instrumento transformador
O que diferencia um blog do verdadeiro jornalismo, aparentemente, é uma série de características técnicas, como a organização, o escopo geral, a diversidade de fontes, a periodicidade efetiva e a confiabilidade. No mais, é um formato ainda em transição, que tende a se consolidar como parte do novo jornalismo participativo, tema do qual já nos ocupamos aqui em outras ocasiões [ver remissão abaixo].
Mas isso apenas aparentemente, pois não é o aspecto técnico que transforma o blog em instrumento essencialmente diferente do que chamamos imprensa. Como tem por núcleo o viés de seu autor, sempre único e personalizado, o blog é uma manifestação pessoal que acaba atraindo outras manifestações semelhantes, o que gera um círculo de opiniões predominantes, quase homogêneas. Com a consolidação dessas opiniões no universo do blog, esse círculo inicialmente restrito começa a se transformar numa espiral dinâmica, a qual, por não encontrar o contraditório, conduz geralmente à irracionalidade. Melhor dizendo: sem reparos, contenções ou diversidade, o conjunto do discurso se torna irracional.
Quando o panfleto de papel ou eletrônico tem natureza humanista ou está a serviço de interesses mais amplos, contemplando a diversidade da sociedade, ele se revela instrumento transformador. Temos muitos casos de grandes contribuições para o desenvolvimento da consciência de cidadania, produzidas por ambientalistas e humanistas que se anteciparam à imprensa para alertar a sociedade sobre riscos e oportunidades que conseguiam ver com clareza antes da massa da opinião pública. Não é o caso, muito ao contrário, dos blogs políticos, que, em vez de propor reflexões, buscam apenas arregimentar correligionários.
Credibilidade por osmose
A citação de Miguel de Unamuno, que também produziu controvérsias, tem o sentido de contrapor à irracionalidade desse panfletarismo a inteligência da imprensa. Unamuno foi, como ele mesmo disse, criador de paradoxos. Ele próprio foi um paradoxo vivo, ao apoiar inicialmente o franquismo. Paradoxos nos fazem pensar melhor. Para quem não entendeu – e, dado o evidente esforço que muitos manifestantes demonstram para explicitar seu raciocínio, a irracionalidade parece mesmo uma epidemia – a citação de Unamuno teve o objetivo de marcar a imprensa como suposto território da inteligência. Os jornalistas, estejam ou não na ativa, deveriam se colocar contra a onda irracional e bradar, como o pensador espanhol: ‘A imprensa é o templo da inteligência e nós somos seus sacerdotes!’
O fato de um dos maiores jornais do país abrigar e dar status de imprensa séria a um panfleto político só ocorreu, evidentemente, porque o viés predominante do blog coincide com o do jornal. O que talvez os dirigentes do diário não saibam, ou estejam relevando, é que, ao usar a ‘mão-de-gato’ do blog para a editorialização de suas páginas de política, estão trazendo para debaixo de seu guarda-chuva parceiros potencialmente perigosos. Isso porque os blogs de natureza política raramente funcionam isoladamente. Eles fazem parte de redes de influência muito utilizadas por marqueteiros e profissionais de comunicação que se intitulam jornalistas, mas são na verdade lobistas.
Este observador não é propriamente um leitor e muito menos admirador da publicação Caros Amigos, mas é de justiça citar que ela nos ofereceu um perfil esclarecedor e estarrecedor de um desses lobistas, na edição sobre corrupção publicada em outubro. Por ali se pode calcular o mal que faz à sociedade a vulnerabilidade, para não dizer cumplicidade, da chamada grande imprensa à manipulação. Muitos blogs políticos – entre eles o Blog do Noblat – fazem parte dessa rede, propositadamente ou inadvertidamente. De qualquer maneira, quando faz barulho, o blog sempre se beneficia do crescimento no número de acessos. Abrigado no jornal O Estado de S.Paulo, esse panfleto ganha por osmose a credibilidade do jornal e a estende aos oportunistas e irresponsáveis que fazem dessa rede um balcão de negócios nem sempre éticos.
Expressão deturpada
Os lobistas que utilizam essa rede são muito procurados por colunistas de jornais, revistas e até personalidades da televisão. Fornecem notas, informações selecionadas, com exclusividade para cada um, fofocas, anedotas. Cultivam relacionamentos e se tornam formadores de opinião. Vendem tudo isso a empresas em dificuldades ou com problemas de imagem pública, sob a etiqueta de ‘gestão de crise’. Prometem – e cumprem – coisas que nem as melhores assessorias de imprensa podem se permitir. Porque, aberta a tudo que combina com suas premissas, a imprensa se torna vulnerável a jogadas espertas.
Executivos da fábrica de cervejas Schincariol foram há alguns meses procurados por um desses lobistas, logo após o episódio da prisão de todos os seus diretores. A estratégia que lhes foi vendida era ‘plantar’ na opinião pública a idéia de que a empresa era perseguida pelo governo, com financiamento da cervejaria líder do setor, como forma de distrair a atenção dos escândalos políticos.
Apostando na irracionalidade, o lobista sabe que o discurso da ‘empresa nacional perseguida pela multinacional com apoio de governo corrupto’ parece verossímil. Mesmo que a Schincariol não tenha contratado o lobista, uma olhada rápida em alguns sites e blogs da rede revela que foram postadas algumas manifestações com esse teor, e muitos acreditaram. O mesmo aconteceu no caso da loja Daslu. Os lobistas chamam isso de ‘inteligência de informação’, deturpando a expressão usada por profissionais sérios dedicados à gestão de crises.
Na zona da barbárie
Esse sistema mafioso só funciona no ambiente da irracionalidade. Por isso, a rede cultiva núcleos de opinião homogêneos, geralmente freqüentados por jovens de tendência conservadora e raciocínio curto, onde é mais fácil fermentar a estupidez. Trata-se de material muito valioso em tempos eleitorais, pela capacidade de dar ares de verdade às mais tresloucadas invenções. O lobby das armas usou essa mesma rede à qual nos referimos, durante o bimestre final da campanha do referendo. E virou o jogo.
Quando a soma das irracionalidades individuais começa a formar espirais dinâmicas e ativas, surgem as hordas. A juventude dessas hordas, que lhes garante tempo, energia e irresponsabilidade para vociferar suas crenças e preconceitos, faz multiplicar como fogo na pólvora o efeito deletério da manipulação. Enquanto as hordas se mantêm no ambiente virtual, o que temos como danos maiores são os atentados à reputação alheia. Mas elas tendem a vazar para o mundo real, sob a forma do voto ou da ação violenta. Então, o que parecia uma brincadeira se transforma em risco para a sociedade.
Se entendermos que os gestores da grande imprensa ignoram esse fenômeno, temos que concluir que lhes falta uma qualificação essencial: a de conhecer profundamente o negócio em que estão metidos. Se, mesmo sabendo de tudo isso, a grande imprensa entra nesse jogo perigoso, precisamos colocar em debate na sociedade se essa imprensa ainda cumpre um papel social relevante e construtivo e, portanto, se ainda merece o respeito que lhe garante vantagens fiscais e outros benefícios. A imprensa deve estar na vanguarda do processo civilizatório, sua mensagem tem que ser dirigida para o ‘neocórtex’ do cérebro social, deve estimular a reflexão, se ainda se pode fazer metáforas neurológicas sobre o tema. Ao apostar na irracionalidade, a imprensa estimula as zonas sombrias do cérebro, aposta no limbo, de onde não haverá de brotar cidadania, mas a barbárie.
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Jornalista