A interceptação da flotilha turca que pretendia furar o bloqueio israelense de Gaza vai produzir drásticas alterações no Oriente Médio, na União Européia, nas relações EUA-Israel e, certamente, na estratégia da diplomacia brasileira para a área, especialmente no tocante ao acordo nuclear com o Irã. A esta altura os especialistas estão mergulhados no exame dos desdobramentos, mas aqui, neste Observatório da Imprensa, cabem as avaliações estritamente midiáticas.
Como o episódio ocorreu no alvorecer do dia 31 de maio (segunda-feira), só foi noticiado no meio da manhã (depois dos telejornais matutinos das grandes redes), pelos portais de notícias, blogs, rádios e TVs a cabo. Esta é uma mídia vocacionada para emergências e não propriamente para coberturas matizadas e checadas. O noticiário do fim do dia e da manhã seguinte (terça, 1/6), graças ao inusitado e à natural dramaticidade, manteve a entonação inicial e as primeiras avaliações.
A bola de neve informativa é comandada por uma dinâmica própria, retilínea, incapaz de desvios, de forma a imantar os fragmentos que aparecem em sua direção ao longo do percurso. Em outras palavras: a notícia busca a sua confirmação e não a sua negação. E quando a bola rola no terreno baldio dos preconceitos (políticos ou de qualquer outra natureza), desvios e correções de rumo levam tempo para se consumar. Ou jamais se consumam.
Armadilha da paranóia
Os primeiros impulsos da nossa mídia foram pontuados pelos relatos via web da cineasta brasileira-americana Iara Lee que estava no Mavi Marmara, o único barco da flotilha onde se registrou um corpo-a-corpo entre militantes islâmicos e pró-palestinos e comandos israelenses.
O impacto dos nove mortos no grupo desses militantes (os despachos iniciais mencionavam 29 vítimas fatais) foi decisivo para caracterizar o episódio e expedir veredictos instantâneos. Outro testemunho em vernáculo – o da médica militar brasileira-israelense Ana Luiza Tapia, levada de helicóptero ao barco para atender as vítimas da escaramuça – só começou a circular na rede cinco dias depois, quando o último barco da flotilha, o Rachel Corrie, já fora apresado, sem incidentes.
A entrevista do cameraman libanês da rede Al-Jazira, Andre Abu Khalil, à agência Reuters (ver aqui) certamente corrigirá alguns prejulgamentos que se mantiveram na mídia ao longo de uma semana. Somado aos depoimentos dos ativistas pró-Gaza não- islâmicos, organiza o relato com um conjunto de informações razoavelmente fundadas:
a) o comboio não transportava armas nem material estratégico;
b) a bordo havia ativistas pró-Gaza, pacíficos e pacifistas, mas também um grande contingente de militantes islâmicos, sem armas porém motivados para provocar uma chacina;
c) os quatro primeiros comandos israelenses que subiram ao Mavi Marmara não portavam armas letais, foram linchados pelos militantes – o que provocou o avanço de outro pelotão, atirando para matar.
Esta reavaliação do episódio militar e sua cobertura pela mídia não altera algumas constatações conceituais:
1.
O bloqueio de Gaza é desumano, ineficaz, desgastante e funesto para a imagem de Israel;2.
o país, mais uma vez, deixou-se levar pela paranóia e caiu na armadilha do uso desmedido da força – dificilmente vai se livrar do estigma.As bolas de neve convivem muito bem com este tipo de situação.
Leia também
Sobre reducionismos e ressentimentos – A.D.
Um barco chamado Rachel – A.D. [Diário de S.Paulo, 4/6/2010]