Thursday, 07 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A mídia como arma pela segurança no trânsito

Tema de saúde pública que ainda não entrou na agenda de discussão e mobilização da sociedade, o trânsito mata cerca de 40 mil brasileiros por ano. Na maioria dos acidentes com vítimas fatais, a perigosa mistura de álcool e direção está presente. De acordo com um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgado em junho, 1,2 milhão de pessoas em todo o mundo morrem em acidentes de trânsito por ano. A metade dos mortos são pedestres, ciclistas e motociclistas. A pesquisa, realizada em 178 países, classificou a violência no trânsito como “epidêmica”. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (11/10) discutiu o papel da imprensa na conscientização da segurança no trânsito.

Para debater este assunto, o programa contou com a participação de três especialistas no tema. No Rio de Janeiro, participaram José Mauro Braz de Lima, coordenador do Programa de Álcool e Drogas e professor de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e o advogado Marcelo Nogueira, professor de Direito Penal da Academia de Polícia Militar D. João VI e do Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças da Polícia Militar. Em Brasília, o convidado foi Paulo Cesar Marques da Silva, professor de Engenharia de Tráfego na Universidade de Brasília (UnB). Paulo Cesar dirigiu a Associação Nacional de Pesquisa e Ensino em Transportes (Anpet) e integrou a Câmara Temática de Educação para o Trânsito e Cidadania, órgão assessor do Conselho Nacional de Trânsito.

Em editorial, Dines sublinhou que a mídia é a única instituição que tem condições de criar uma consciência nacional sobre os perigos do álcool na direção.“O primeiro romance de Jorge Amado chamou-se O país do carnaval, isso foi em 1931, há 80 anos. Hoje este país deveria chamar-se o país da cerveja. A inocente cervejinha transformou-se em passaporte para a morte – é o produto mais anunciado na mídia brasileira, mas toda vez que se ousa lembrar este dado macabro, mobilizam-se os cínicos defensores da liberdade de expressão impedindo qualquer debate que possa levar a restrições no tocante a publicidade e venda de cerveja”, criticou.

Super-herói ao volante

A reportagem exibida antes do debate no estúdio entrevistou Fábio Barbirato, chefe da Neuropsiquiatria Infanto-Juvenil da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. O neuropsiquiatra explicou que o álcool atua no sistema nervoso central de uma forma inadequada. “Ele deixa com a sensação de maior potência, de maior capacidade. A pessoa se acha superior. E aí você se acha com uma grande arma na mão [o carro] podendo fazer tudo e totalmente protegido de tudo o que está à sua volta”. Estas sensações são chamadas de distorções cognitivas. O álcool inibe o sistema nervoso central e desinibe a capacidade de perceber o certo e o errado.

O neuropsiquiatra explicou que algumas pessoas acreditam que têm uma tolerância ao álcool, mas esta percepção não é verdadeira. “Quando a pessoa toma um chope ou uma taça de vinho, tem uma perda, uma alteração da atenção, uma alteração da consciência. Quando ela toma três ou quatro, ela vai ter uma perda um pouco maior. Quando ela toma uma garrafa, vai ter uma perda muito maior da consciência. Quando você tem a perda da consciência, você tem a perda de tudo o que está acontecendo à sua volta”. Para o neuropsiquiatra, é preciso chamar a atenção dos jovens para os perigos do álcool para criar uma consciência dos problemas em longo prazo.

Bárbara Soares, pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (CESEC), explicou que o trânsito está presente na percepção das pessoas sobre o seu cotidiano; no entanto, os problemas relacionados com a mortalidade e a morbidade nas ruas e estradas são naturalizados. “O que não está na agenda é a desnaturalização disso que passa como algo que faz parte da vida. Pessoas morrem em uma proporção que corresponde a países que estão em guerra”. Para a pesquisadora, as campanhas de conscientização devem apelar para o humor. Jorge Moreno, coordenador de Educação do Detran-RJ, destacou que o álcool é a maior causa de acidentes, mas a imperícia a o excesso de velocidade também contribuem para aumentar os índices de mortalidade.

Sem limites

O Observatório entrevistou Orlando da Silva, que ficou paraplégico em 2003 após um acidente de carro. Orlando estava de carona com um amigo após ajudá-lo na construção de sua casa quando o carro capotou. Os dois haviam bebido e, segundo Orlando, o motorista negou-se a diminuir a velocidade. “Houve muita cerveja, muita bebida. Terminando a laje, nós passamos ainda em três bares. Foi quando eu falei com ele que meus parentes deveriam estar preocupados. Ele, achando que estava com toda a razão, falou comigo: ‘entra no carro que eu vou te levar’. Quando eu entrei no carro ele saiu em disparada. Eu fiquei nervoso e pedi para ir mais devagar. Foi quando ele falou: ‘se eu piloto carreta, isso aqui para mim é uma brincadeira’”, contou. Orlando ficou hospitalizado por mais de 130 dias e sofreu uma cirurgia na coluna vertebral. Passados oito anos do acidente, freqüenta semanalmente a Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR).

No debate ao vivo, Dines perguntou ao neurologista José Mauro Braz de Lima se está havendo complacência com o consumo de cerveja. Para o médico, a cerveja não deveria ser classificada como uma bebida mais fraca, como estabelecido pela Lei nº 2924 de 1996. “Ela é muito explícita quando diz que é proibido propaganda de bebida alcoólica e de cigarro. A cerveja ficou de fora. O Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária (Conar) foi conivente com isso. A mídia e a sociedade agiram com leniência, com conivência. A propaganda maciça de cerveja induz a sociedade a acreditar que é uma bebida leve. Aí, o jovem bebe não uma latinha, mas cinco, seis latinhas”, criticou.

A cerveja, de acordo com José Mauro Braz de Lima, não é uma bebida leve. A quantidade de álcool em uma dose padrão de uma cerveja é a mesma quantidade de álcool puro de uma dose de vinho, caipirinha ou uísque. “Todas as doses têm a mesma quantidade de álcool puro,ou seja, de 15 a 16ml. Só que a cerveja já vem diluída, só dá a impressão de que é mais leve. A indústria se aproveitou disso. A imprensa fez isso. O estado, as autoridades públicas também se envolveram com isso. E a cerveja ficou como se não fosse bebida pesada. Então, a propaganda maciça na televisão dá a idéia de que cerveja pode ser consumida. E é álcool como outro qualquer. Se toma porre, se embebeda de cerveja. Parece que a cerveja nos entorpeceu”, avaliou o neurologista.

Prejuízo para a sociedade

“A bebida alcoólica é um dos principais fatores dessa grave matança que a gente observa todos os dias de jovens sem doença”, lamentou o médico. Braz de Lima ressaltou que só no Brasil, a cada ano, mais de 500 mil pessoas são feridas em acidentes de trânsito. Deste montante, 20% têm seqüelas graves e representam um custo para o sistema público de saúde e para a renda de suas famílias. “Se o IPEA fala em R$ 30 bilhões em despesa, nós poderíamos multiplicar isso por dois, pelo menos, o que seria um prejuízo muito grande. E isso não está na conta. Ou está e não se fala”, alertou.

A cultura brasileira, na avaliação do professor Paulo Cesar Marques da Silva, não aponta para o risco real do ato de beber e dirigir. O fato de conduzir alcoolizado acaba sendo um atenuante nos acidentes. “É como se as pessoas dissessem: ‘coitado, ele estava bêbado, não sabia o que estava fazendo’. Isso acontece no senso comum e, muitas vezes, acontece nas decisões judiciais. Eu creio que não é um problema da legislação. Eu creio que a legislação brasileira é bastante rigorosa, prevê bastante bem estes casos e punições, mas existe uma certa permissividade no conjunto da sociedade. O carro é um instrumento de poder e, portanto, quem está no carro é poderoso”. O professor sublinhou que chamar de acidentes as ocorrências envolvendo motoristas embriagados é incorreto porque as colisões são evitáveis e previsíveis.

Centros urbanos planejados com avenidas largas, como Brasília e Boa Vista, concentram um grande número de colisões. O professor de Engenharia de Tráfego na UnB explicou que garantir a fluidez o trânsito não significa estimular o excesso de velocidade. “Reduzir velocidade acaba otimizando a utilização do sistema viário porque cabe mais gente passando por unidade de tempo. E a sensação que as pessoas têm com o tempo no trânsito é muito falsa”, explicou Paulo Cesar. A percepção de economia de tempo quando se dirige em alta velocidade é maior do que o tempo real poupado. Quando a velocidade é multiplicada por dois, o efeito de uma colisão é multiplicado por quatro. Neste sentido, a imprensa, a publicidade e a indústria automobilística têm um papel fundamental para a conscientização sobre os limites de velocidade.

Lei Seca

Dines pediu para o advogado Marcelo Nogueira explicar o porquê de não ser obrigatório que os motoristas parados na Lei Seca façam o teste do bafômetro. O professor de Direito Penal explicou que esta é uma questão complicada na Jurisprudência, pois não está expresso na lei que o motorista seja obrigado a produzir provas contra si mesmo. “Mas a Lei Seca – que de seca não tem nada porque não proíbe ninguém de beber, o que não pode é beber e conduzir o veículo – deu um instrumento importante para o agente público. Ela permite que ele avalie através de notórios sinais de excitação e torpor se ele está embriagado. Com isso, a gente consegue preservar o bem jurídico, que é a vida, a segurança no trânsito, autuar este condutor e tirá-lo de circulação”, explicou o advogado. No entanto, para ser configurado como crime, é preciso a dosagem etílica. Quem não sopra o bafômetro, não responde penalmente.

Na avaliação de Nogueira, a legislação brasileira para o trânsito é completa; o problema é que, no Brasil, há leis que “não pegam”. Em Roraima, a Lei Seca não foi adiante, enquanto no Rio de Janeiro houve avanços. “Estamos unindo fiscalização – e esta é a palavra-chave – com educação. Ela junta a Polícia Militar e a abordagem dos cadeirantes mostrando os efeitos desta mistura de álcool com direção. Um novo caminho para a gente é mudar o comportamento do motorista brasileiro, que é mal educado, sim, é imprudente, sim. O advogado comentou que o motorista precisa ter certeza de que será penalizado ao dirigir alcoolizado.