Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A mídia como campo de batalha

Sou obrigado a admitir logo de saída o meu desconforto com os procedimentos da vida acadêmica. Sou avesso às formalidades e às formatações inflexíveis. Quando a professora Cremilda Medina me transmitiu o generoso convite para pronunciar uma conferência neste colóquio tremi nas bases. Como repórter e narrador fui treinado para adotar relatos diretos. Mais tarde, como observador, descobri que nossa capacidade de intervir na coisa observada depende de uma sutil combinação de fatores objetivos e subjetivos que não se ajusta às regras e cânones dos trabalhos científicos.

Como nossa pauta compreende uma avaliação do que aconteceu nas últimas décadas na América Latina em matéria de Direito à Informação e Liberdade de Expressão, optei por oferecer um balanço pessoal, a visão de um percurso e, junto, acrescento uma constatação.

Começo pela constatação: fazer jornalismo hoje no Brasil e na América Latina está se tornando mais difícil e mais complicado do que no passado recente. Apesar do tempo transcorrido desde a redemocratização, o arsenal autoritário aumentou, aperfeiçoou-se, disfarçou-se e está muito mais presente. Antes, nos Anos de Chumbo, sofríamos as pressões de uma facção. A militar. Agora somos vítimas de pressões oriundas de diversas facções e direções, todas muito exacerbadas.

Corrijo: vítimas não, na verdade somos o campo de batalha onde se trava uma guerra escancarada pela conquista dos corações e mentes em sociedades carentes de referências primárias e atordoadas pelo excesso de informações secundárias.

Interesses diretos

Esta guerra está nos jornais de hoje, mas estava também nos jornais do ano passado e anteriores. De um lado está o presidente da República, que numa solenidade oficial proclama que a imprensa mente, a verdade estaria apenas nas pesquisas de opinião. Do outro lado, a Associação Nacional de Jornais entoando uma cantilena que pretende ser coletiva mas resulta abstrata. Quando um jornal precisa defender uma posição deve fazê-lo em seu nome e não sob a forma impessoal de abaixo-assinado.

A censura tornou-se contagiante, mimetizada. Em diferentes formatos e graus tornou-se recurso rotineiro, deixou de ser a marca registrada das ditaduras assumidas e converteu-se numa espécie de freio de mão que se aciona nas emergências. Acontece que o conceito de emergência está tão relativizado como o da censura.

Resultado: o censor fardado foi substituído e multiplicado pelo censor civil, togado, de batina ou de fatiota de executivo. Não sejamos sexistas: mulheres não estão livres do furor censório. Também não sejamos ingênuos: os censores mais irascíveis e exaltados encontram-se na blogosfera, onde evidentemente não se proíbe a divulgação de um texto mas funciona a intimidação e a ameaça de linchamento para calar aqueles que ousam expressar opiniões menos simplórias.

Dos anos 1960 até a primeira década do século 21 ocorreu no continente uma metamorfose impressionante: as antigas vítimas dos controles informativos assumiram de forma escancarada a sua condição de empresas jornalísticas e, como é natural, aglutinaram-se em corporações econômicas. A velha veemência de jornais e jornalistas baseava-se em princípios morais e jurídicos. Com o passar dos anos, a imprensa abdicou do papel de instituição mitológica, deixou de ser o famoso Quarto Poder, e sem reparar nas implicações, acomodou-se sem pudor na esfera de indústria – indústria cultural, mas indústria.

O que era uma posição singular de determinados veículos, converteu-se numa ação coletiva, sem nuances, no estilo de uma guilda medieval. Em outras palavras: a imprensa pluralista e diferenciada que existiu antes, durante e em seguida aos Anos de Chumbo, homogeneizou-se, deixou-se transformar em lobby. E, como lobby, age e reage levando em conta os seus interesses diretos, específicos, imediatos, em prejuízo do interesse público, permanente, que por tradição sempre vocalizou.

Nome aos bois

Estamos assistindo a um corte verdadeiramente epistemológico, crucial, na historia dos meios de comunicação. O toque romântico de buscar da verdade e, quando necessário, seguir na contramão, foi definitivamente aposentado e está sendo substituído pelo ‘jornalismo de resultados’, que compreende comportamentos claramente antijornalísticos: supressão e manipulação de informações bem como o silenciamento de vozes discordantes.

Mencionei há pouco a minha disposição de apresentar o saldo de uma caminhada. A opção é inevitável para um jornalista que não está longe da marca de 60 anos de ofício. Silenciado no passado, considerei que não deveria silenciar agora. Se disponho de um acervo de experiências ainda que penosas, o certo é compartilhá-las ao invés de teorizar sobre elas.

Experimentei no ano passado um percurso semelhante, mas no âmbito editorial, quando a Summus avisou que estava na hora da 9ª edição do Papel do Jornal, publicado em março de 1974. Fizemos as contas e constatamos que o livro completava 35 anos de presença ininterrupta nas livrarias. O mérito não é do autor, mas de um generoso co-autor – o tempo.

O mesmo texto escrito quando a alta do petróleo e o custo do papel somavam-se ao extraordinário desenvolvimento do telejornalismo, agora ajustava-se perfeitamente ao coro dos apocalípticos que garantem a vitória definitiva da mídia digital sobre os meios impressos, sobretudo jornais diários.

Em nossa profissão lidamos com o tempo em lapsos mais curtos. Nosso ‘periodismo’ tem intervalos de horas, dias, às vezes semanas. Mas, se temos a oportunidade de utilizar lapsos de tempo mais extensos, veremos como fenômenos isolados acabam se consolidando naturalmente em tendências.

O balanço que trago aqui é ainda mais amplo: dos 58 anos de profissão, passei 50, meio século, convivendo com a manifestação mais absurda concebida pela mente humana no tocante aos seus semelhantes: a proibição de manifestar-se, de ser.

A palavra censura e o ato de censurar não estão em desuso na América Latina. Examinada de longe, esta parte do Novo Mundo em que vivemos parece um território liberado do autoritarismo e o gigante brasileiro aparece como a prova mais eloqüente da normalização política.

Mas esta prova de liberdade vem sendo desmentida há 237 dias consecutivos [em 25/3/2010] no Estado de S. Paulo. O jornal pode dizer tudo, sem restrições, mas está proibido de investigar os negócios do clã Sarney por ordem de um tribunal que paradoxalmente foi constituído para zelar pela proteção do Estado de Direito e não para feri-lo.

O jornalista Elio Gaspari goza de inteira liberdade em sua coluna semanal reproduzida em diversas capitais do país, mas quando denunciou o governador do Espírito Santo como responsável pelas condições sub-humanas do sistema penitenciário do estado sua coluna foi suprimida num importante jornal capixaba, A Tribuna, com a desculpa de ‘falha técnica’. Esta ‘falha técnica’ tem um nome específico: censura.

Dez punições

No meu artigo semanal do portal do iG, no Último Segundo, eu poderia teoricamente observar e comentar todos os assuntos. Durante meia dúzia de anos esta liberdade foi efetiva até que, sob nova direção e com novos acionistas, o portal resolveu reviver a triste rotina censória do passado recente: embargou um texto sobre direitos humanos em Cuba e me demitiu do quadro de colaboradores onde eu era apresentado como ‘um dos mais importantes jornalistas etc. etc.’ Pilhéria.

Minha reação íntima ao comunicado telefônico foi resumida num curto desabafo: ‘Outra vez?!’ Outra vez. Nestes 58 anos já fui castigado 10 vezes em função do que fiz ou escrevi como jornalista. Uma demissão a cada 5,8 anos de trabalho, quase duas cacetadas por década.

Não foram punições de ordem profissional ou laboral, foram castigos políticos inconfundíveis. Desconheço se esta incidência vale para todos e se tem condições de ser generalizada. De qualquer forma, mesmo como caso de estudo particularizado tem sua utilidade como reflexão sobre as raízes autoritárias da civilização latino-americana.

O quadro que vou mostrar pode oferecer elementos preciosos e/ou pitorescos para uma ‘anatomia-do-cala-a-boca’, que no caso brasileiro começou em 1500 e só foi interrompido 308 anos depois, quando a Corte portuguesa finalmente permitiu a instalação da primeira tipografia na colônia brasileira.

Estas são as datas e os dados básicos. As circunstâncias de cada punição serão rapidamente explicadas. Os nomes dos executantes são omitidos para evitar qualquer interpretação revanchista. Conservei apenas a identidade dos mandantes. Tentarei ser frio e ‘científico’ para evitar qualquer vitimização.

1ª Punição. Diário da Noite, Rio, 25 de janeiro de 1960. Mandante: Assis Chateaubriand. Causa: desobedecer a ordem para esconder o seqüestro do transatlântico Santa Maria por militantes anti-salazaristas. Demitido.

2ª Punição. Jornal do Brasil, Rio, 13/12/1968, promulgação do AI-5. Censores militares são desobedecidos e ridicularizados na edição do dia seguinte. Dia 20/12, discurso como paraninfo contra a censura, PUC-Rio. Texto embargado pelos censores de plantão; prisão na Vila Militar no dia 22/12 até 24/12 e depois do Natal, de 26 até 28/12.

3ª Punição. Jornal do Brasil, janeiro de 1969. Interrogatório de 8 horas e prisão no Batalhão de Guardas (São Cristóvão) durante a noite para evitar rebeldias no momento em que o jornal passou a autocensurar-se. Ao longo dos anos quatro seguintes, sucessivas convocações para depor na Polícia Federal. Em 13/9/1973, desobediência à ordem de não destacar em manchete o assassinato de Allende. O castigo veio menos de 90 dias depois.

4ª Punição. Jornal do Brasil, 6/12/1973. Demitido pelo dono do jornal, Nascimento Brito, ‘por indisciplina’. Portas imediatamente trancadas nas empresas do Rio e São Paulo por determinação do ministro [da Justiça] Armando Falcão.

5ª Punição. Folha de S. Paulo, 19/9/1977, em plena distensão. Pressão do governo Geisel, jornal obrigado a recuar. Suspensão das colunas diária, página 2, e semanal, domingo, página6 (‘Jornal dos Jornais’). Coluna diária voltou dois meses depois. O ‘JJ’ foi considerado subversivo. Jamais retornou.

6ª Punição. Folha de S. Paulo, maio de 1980: artigo censurado pela direção denunciando Paulo Maluf como responsável pela repressão à greve do ABC. Assunto repetido nos dias seguintes e novamente censurado (duas vezes). Demitido pela direção por ter publicado o mesmo texto no Pasquim.

7ª Punição. Folha de S. Paulo. Coluna semanal reiniciada em 1997, interrompida em 1999 sob a acusação de publicar informações inverídicas no Observatório da Imprensa. O jornal retratou-se por ordem judicial em 2000.

8ª Punição. Julho de 2000 – o Observatório da Imprensa é eliminado.do portal UOL porque continuava a publicar ‘mentiras’ contra o jornal.

9ª Punição. Novembro, 2009. Nova direção do portal iG suspende a hospedagem do Observatório da Imprensa.

10ª Punição. Em 27/2/2010, ainda no portal [iG, agora no jornal eletrônico] Último Segundo, artigo semanal é censurado e a colaboração suspensa depois de seis anos.

Episódio simbólico

Não estão incluídos os embargos (lista negra) em veículos jornalísticos em represália ao que publiquei no ‘Jornal dos Jornais’ (a partir de 1975) e no Observatório da Imprensa, a partir de 1996. As críticas ao comportamento lobista da ANJ e suas conexões com a Opus Dei foram punidas com um cordão de isolamento em torno do Observatório e do seu editor.

Ainda que não se trate de um levantamento ‘científico’ e apenas de um quadro sinótico de uma trajetória individual, é possível identificar algumas peculiaridades, identidades e constâncias:

** A repressão ao exercício livre do jornalismo começou antes da ditadura militar de 1964 quando o país estava no auge dos ‘anos dourados’ de JK. Caso do Diário da Noite e o seqüestro do Santa Maria.

** Das 10 punições apenas duas foram praticados pelos órgãos de segurança do regime militar. Em compensação foram as mais longas e mais violentas, compreendendo duas prisões, humilhações e ameaças constantes. Uma terceira resultou de pressão do governo sobre o veículo.

** As duas punições da Folha ocorreram na fase inicial da sua reformulação, quando pretendia assumir o papel de consciência crítica da mídia.

** As novas plataformas e as novas tecnologias de informação não representaram qualquer melhoria na oxigenação do sistema midiático. O poder interno continua centralizado, monolítico, impermeável ao pluralismo. Em nove punições, sete ocorreram ao longo de 40 anos na mídia tradicional e duas nos primeiros 10 anos da Era Digital. A abertura do ciberespaço aparentemente resumiu-se às redes sociais, aos blogs e comentários dos leitores. O jornal digital que substituirá o jornal impresso está montado na mesma plataforma do voluntarismo.

A conjuntura parece ser ainda pior do que este levantamento individual. Repito a constatação inicial: o exercício de um jornalismo livre no início desta segunda década do século 21 tornou-se ainda mais difícil do que em meados do século 20. O inimigo mudou de endereço, mudou de trajes e multiplicou-se.

No lugar de garantidor do Estado de Direito e da liberdade de expressão, o Judiciário está se tornando um dos mais ferrenhos algozes desta liberdade O levantamento é do presidente da Associação Brasileira de Imprensa, ABI, jornalista e advogado Maurício Azedo, 70 anos de vida, 50 de profissão.

A censura ao Estadão é apenas o episódio mais visível, mais simbólico. Em plena democracia, alguns magistrados e alguns tribunais assumiram-se como intocáveis, cidadãos acima de qualquer suspeita que os párias – nós, jornalistas – não podemos questionar, arguir, muito menos criticar.

Projetos de poder

Há outros algozes. O embargo auto-imposto pela grande mídia em 2008 às comemorações dos 200 anos da fundação da nossa imprensa é tragicômico ou, como se dizia antigamente, joco-sério. Comemoramos o fim de um silêncio tri-secular com uma pesada cortina de silêncio. O início da liberdade informativa em nosso país não foi festejado, foi engolido. Pitoresco? Vergonhoso? Escolham o adjetivo.

A atribulada construção da nossa imprensa foi apagada por ordem superior. Ficamos sem história, sem proto-história, sem patriarcas e sem patronos. Festejou-se com pompa e circunstância a chegada da Corte portuguesa mas impôs-se um embargo ao seu fruto mais expressivo: a livre circulação de idéias que 14 anos depois desaguou na emancipação da colônia.

Quem fabricou esta mordaça? Uma rede que funciona nos desvãos da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), constituída pelos editores formados nos cursilhos da Opus Dei e da Universidade de Navarra, foi a responsável por este desgraçado embargo.

Comemorar os 200 anos do estabelecimento da primeira tipografia no país exigiria que se falasse nas razões do atraso com que chegamos a Era Gutenberg. Lembrar o início de circulação do Correio Braziliense implicaria falar no seu editor, Hipólito da Costa, maçom, preso pela Inquisição de Lisboa. A Inquisição e a censura religiosa não queriam ser lembradas. Significa que não morreram? Significa que mudaram de nome e continuam tão poderosas quanto eram antes.

Além das violências externas não se pode perder de vista uma violência endógena, auto-infligida. Um lobby corporativo será sempre mais implacável e intolerante do que o mandonismo individual. Grupos geralmente nivelam-se por baixo. A mídia não pode funcionar como lobby porque uma de suas funções primordiais é enfrentar os lobbies. Ao articular-se como entidade coletiva, elimina o pluralismo, a diversidade e, sobretudo, estimula a criação de lobbies contrários. Uma sociedade segmentada em corporações, arrumada em torno de interesses particularistas, afasta-se dos consensos e dos sentimentos majoritários incentivando o Estado tutelar e paternalista. Esta contradição vivida pela imprensa tornou-a nervosa, irascível, autoritária, sujeita a suspeitas e desconfianças.

Não podemos ignorar que nas duas últimas décadas a tentação autoritária intoxicou certos países do continente. Projetos de poder substituíram projetos de governo e, na medida em que a mídia passou a se concentrar num número menor de empresas e assumir um papel essencialmente corporativo, o processo radicalizou-se.

Atributos obsoletos

A América Latina está novamente sob tensão. O caso da Venezuela é paradigmático e dramático: desvenda o grau de ressentimento entre as partes. No continente a imprensa deixou de ser livre porque deixou de ser espontânea, enquanto alguns governos repetem o percurso em sentido contrário – proclamam a alternância do poder e logo querem o poder para sempre.

Estamos repetindo com formato e atores diferentes o que aconteceu depois de 1989, depois da queda do Muro de Berlim. O pensamento único de então está dividido em dois, igualmente monolíticos, impenetráveis e implacáveis. A indústria da mídia e aqueles que pretendem controlá-la não estão brincando, jogam pesado. Querem cumplicidades e devoções. Não há mais lugar para a dúvida ou o ceticismo, nem para posições independentes.

O jornalista que equivocamente destinou parte de sua vida a questionar-se e a distanciar-se (certo de que, com isso, melhor serviria à sociedade), defronta-se agora com a melancólica certeza de que estes atributos tornaram-se rigorosamente obsoletos e dispensáveis.

Convertidos em campo de batalha, só nos resta pedir que esta guerra seja breve e deixe alguns sobreviventes para no futuro descrevê-la cientificamente.