‘Sou político, o que significa que sou tratante e mentiroso – quando não estou beijando as criancinhas estou roubando o doce da mão delas. Mas significa também que tenho a mente aberta.’ (Jeffrey Pelt, conselheiro de Segurança Nacional)
A fala acima não é de um personagem real. Está nos excelentes diálogos do filme Caçada ao Outubro Vermelho (1990), do diretor John McTiernan, dita pelo ator Richard Jordan. Ele encarna à perfeição o político americano cuja ‘mente aberta’ permite a solução de crise internacional provocada pelo capitão renegado de um submarino soviético.
Como estaria a crise brasileira se a política fosse vista e tratada assim, sem moralismos, inclusive pela imprensa? O cientista político Gisálio Cerqueira Filho tem pesquisado o fenômeno da ‘moralização da política’ ao lado da historiadora Gizlene Neder, no Laboratório Cidade e Poder do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense, onde ensina Ciência Política e Sociologia.
Uma das conclusões desses estudos – que o pesquisador estendeu à área do Direito e às ideologias presentes na formação histórica do Brasil – é que no trato da política recorre-se comumente a supostos postulados metassociais ou fundamentalistas, de natureza moral, filosófica, ética, religiosa etc., ao feitio de pensadores como São Tomás de Aquino. A partir deste popularizou-se a expressão tomismo para a concepção moral da política, ainda muito forte entre nós, escreveu o professor em recente artigo no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro [ver abaixo]. ‘É isso o que vivemos hoje: um tratamento moral da política, para onde convergem governo (PT e a base aliada), oposição (PSDB e PFL) e especialmente a mídia’.
Para o professor, que respondeu por e-mail a perguntas do Observatório, escândalo é dizermos ‘que horror o caixa 2!’, para em seguida negociarmos com o médico o preço da consulta sem recibo. ‘O tratamento realista da política implica tratar a política como arte; aqui, nem cinismo, nem hipocrisia existem.’
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O senhor diz no artigo do Jornal do Commercio que ‘especialmente a mídia’ está dando tratamento moral à política. Como se dá isso?
Gisálio Cerqueira Filho – Sim, eu vejo a tendência ao tratamento moral da política, digamos, uma certa ‘moralização da política’, mas no pior sentido que a expressão tem, isto é, carregada de hipocrisia, fingimento, cinismo, farsa. A ponto de praticamente toda a grande mídia (TV, rádio, jornalismo impresso) aceitar ser pautada por Roberto Jefferson e, agora, por Waldemar Costa Neto. Pode uma coisa destas?
O senhor diz também que dar tratamento político à política significa ‘aceitar os conflitos de desejos (dos indivíduos) e interesses (dos indivíduos, grupos sociais, classes etc.)’. Como a imprensa poderia pôr em prática essa visão ‘realista’ da política? Seria necessário um traço de cinismo, digamos?
G. C. F. – Exatamente o contrário, minha cara. Não há nada oculto no caso, a ideologia na pós-modernidade já não apela mais ao ‘eles não sabem o que fazem’. Falo como cientista social, mas também como poeta bissexto. O tratamento realista da política implica tratar a política como arte; aqui, nem cinismo, nem hipocrisia existem. Agora, não existe cinismo quando a grande mídia quer que Lula governe num regime presidencialista de coalizão de maioria, sem fazer alianças políticas? Se o PT não fez maioria no congresso, como querer que Lula governe sem aliança? E aliança com quem? Com o PSDB e o PFL que fazem oposição formal? Ou Lula deve buscar aliança com outros partidos? Fazer alianças com outros partidos, forjar a maioria no Congresso, isso é imoral? Mas foi assim que a grande mídia tratou a aliança necessária do PT com PL, PP, PTB. Estampou o horror, tanto quanto uma boa parte do próprio PT, com a aliança que Lula fez com José Alencar e o PL, por exemplo. Em ambos os exemplos (críticas às alianças por parte da grande mídia e por parte da esquerda do PT) é dar tratamento moral à política.
Como deveria a imprensa agir, então?
G. C. F. – Não vou me colocar no papel de juiz da mídia. A cultura, a ideologia estão imersas numa visão tomista da política. Aqui, a política é tratada como missão, como tudo ou nada, em oposição à política como arte. Está presente uma relação com um certo padrão de pureza ética. Enquanto isso, veja, por exemplo, como é tratada a questão das drogas. Com que cinismo é desconhecida a lavagem de dinheiro que esse comércio (e o de armas também) realiza… Com que cinismo é tratada a questão penitenciária, outro exemplo…
Mas que vantagem traria uma visão da política como arte?
G. C. F. – Uma visão da política como arte implica discutir, sem cinismo e hipocrisia, o pacto necessário para incluir as massas marginalizadas no campo e excluídas nas cidades; o Fome Zero é uma tentativa, o projeto Bolsa-Família é outra, a abertura da universidade aos afro-brasileiros também. São três exemplos, apenas. O que fez a grande mídia? Tratou com seriedade os três projetos? Não, preferiu focar naqueles famintos que eventualmente driblam os critérios legais e formais para ganhar duas cestas básicas, duplicar o bolsa-escola ou mesmo ganhar a bolsa quando não teria exatamente esse direito. E acusam de corrupção o esforço do povão para se incluir numa sociedade tão elitista como a brasileira. O povão já ficaria feliz se a grande mídia não atrapalhasse. É pedir muito, o engajamento da grande mídia num projeto robusto de massa visando educação básica pública e de qualidade que definitivamente tirasse das ruas nossas crianças? Tal como proposto no projeto dos Cieps?
Segundo o senhor, essa visão está sintetizada no bordão da oposição ‘contra as esquerdas: não podem ganhar; se ganharem, não podem tomar posse; se tomarem posse, não podem governar; se governarem, devem ser retiradas do governo’. A imprensa está neste caminho conscientemente?
G. C. F. – A não-consciência absolve a mídia? Como disse, já ultrapassamos a fase do ‘eles não sabem o que fazem’. Agora estamos em plena época do ‘eles sabem muito bem o que fazem, e ainda assim fazem’. Há um cheiro de queimado no ar. A grande mídia está queimando o Lula.
Como diz o senhor, o que está em jogo é menos uma ‘questão de legalidade (pois muitas práticas consideradas antiéticas não são necessariamente ilegais), mas uma questão político-ideológica visando a não-reeleição de Lula’. Se não fôssemos moralistas, como interpretaríamos a crise atual? Ou seja, ética na política é uma contradição em termos? Há alguma crítica realista a se fazer a esse escândalo? Ou nem escândalo isso é?
G. C. F. – Escândalo é dizermos: que horror o caixa 2! E sairmos tranqüilos para uma consulta médica, por exemplo, e discutirmos com o profissional da saúde, numa boa, se queremos recibo ou não. Com recibo é mais tantos por cento…
O desejo de não-reeleição de Lula está inscrito na conjuntura a partir de interesses concretos de grupos e pessoas. Ética na política é reconhecer a implicação dos interesses e desejos na ação política. Ou é ético o debate acerca da declaração de FHC com relação a Lula ser um ‘peru bêbado ás vésperas do carnaval’? Toda a grande mídia discutiu essa bobagem e deu espaço para FHC dizer que não falara exatamente isto. Dissera que Lula era ‘peru bêbado às vésperas do Natal’. A emenda foi pior que o soneto… A correção foi feita tendo como pano de fundo o sorriso debochado e irônico do governador Aécio Neves. Eu vi na TV. Não dá para aceitar a idéia de que recursos eleitorais não-contabilizados (caixa 2) na eleição do PT é corrupção escandalosa e crime eleitoral, mas caixa 2 na campanha de Eduardo Azeredo, presidente nacional do PSDB, é parte da história…
Repare, finalmente, que a legislação e a maneira como funciona o financiamento das campanhas eleitorais no Brasil, inclusive com caixa 2, são praticamente uma armadilha para todos os envolvidos. Se gritar pega ‘ladrão’, não sobra um, meu irmão…
Contradições pequeno-burguesas… A imprensa se aproveita dessas situações, desses sentimentos contraditórios?
G. C. F. – Exatamente. Veja que terrível o artigo do nosso cardeal emérito Eugenio Sales, publicado no Globo (13/8, pág. 7). É um exemplo de completa moralização da política, que está muito espraiada pela sociedade, evidentemente, inclusive no PT. No cardeal, é compreensível; mas nos políticos? Ocorre que, como um bumerangue, isso volta, nos termos da politização da moral. Veja a foto publicada na pág. 10 do mesmo Globo, do dia 12: um cartaz levado numa passeata em Vitória. A pretexto de combater a corrupção, o inimigo principal (Ali Babá e os 300 ladrões) está vestido de islâmico… Bush e Cia. devem estar dando risadas.
E a saída?
G. C. F. – Não seria esse o momento de investir pesado numa modificação pra valer na legislação e na maneira como funciona o processo político-eleitoral? A mídia não poderia estar na vanguarda deste processo? Seria uma bela contribuição.
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Moral e política
Gisálio Cerqueira Filho
[Docente e pesquisador na Universidade Federal Fluminense (UFF). Artigo publicado no Jornal do Commercio em 7/8/05]
No âmbito da moral temos sempre os valores considerados certos e aqueles considerados errados; os bons e os maus. Estamos aqui diante de uma posição maniqueísta. O que me é semelhante é bom; o que me é diferente é mau. No âmbito do tratamento moral da política (‘moralização da política’), apela-se necessariamente para supostos fundamentos metassociais ou fundamentalistas, sejam os de natureza moral, filosófica, ética, religiosa etc., tão ao gosto do momento que vivemos.
Assim fizeram os grandes da Antigüidade: Platão, Aristóteles, Santo Agostinho e Tomás de Aquino. A partir deste último popularizou-se a expressão ‘tomismo’ para uma concepção moral da política, ainda hoje muito forte.
No âmbito da política temos sempre uma prática com efeitos de poder que visa determinados objetivos, sejam econômicos, sociais, ideológicos ou mesmo estritamente políticos. A concepção secularizada da política nasce com Maquiavel, precisamente por não reivindicar uma base metassocial para os estudos sobre o poder.
Um resumo para a concepção maquiaveliana da política: existem tendências contraditórias e inconciliáveis entre os ‘grandes’ e o ‘povo’. Essas tendências não podem ser tratadas, a não ser através da ‘arte da política’. Esta deixa de ser concebida como um jogo de vida ou morte como convém ao espírito de missão, passando a contemplar variadas probabilidades e possibilidades no âmbito da arte de múltiplos recursos táticos e estratégicos, contra a idéia absolutista do tudo ou nada.
Dar um tratamento moral à política significa trabalhar com padrão de pureza ou de superioridade ética de uns com relação ao outro.
Dar um tratamento político à política significa legitimar, reconhecer e aceitar os conflitos de desejos (dos indivíduos) e interesses (dos indivíduos, grupos sociais, classes, etc.), visando a busca de uma relação (im)possível entre eles.
O discurso do Partido dos Trabalhadores (PT), malgrado a política econômica do ministro Antonio Palocci (visando acalmar os mercados e o sistema financeiro internacional) era o de negar um projeto de poder para o partido. ‘Nós não queremos poder pelo poder’, diziam, ‘queremos tão-somente o espaço autônomo, à margem do poder político, para articular nossos direitos civis e culturais (artísticos), interesses espirituais e outros, refletir grande sobre o poder, criticar a busca do poder pelo poder e pensar sobre suas limitações’.
Sujar as mãos
Se esse era um aspecto forte da base do PT, até mesmo no aparelho partidário, e mais ainda na cúpula dirigente, um projeto de poder propriamente dito foi se consolidando na Casa Civil, com o ex-ministro José Dirceu. Ele foi, aos poucos, sendo identificado como artífice de um projeto estrito de poder. Dirceu, a direção do PT (José Genoino, Silvio Pereira, Delúbio Soares e Marcelo Sereno) e poucos outros foram sendo identificados como aqueles que ‘sujavam as mãos’.
Este sujar as mãos se refere ao jogo sujo da política: apoio através de sobras de campanha, caixa dois, dinheiro não-contabilizado formalmente como manda o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), eventuais pagamentos de propina para os deputados e senadores, a hipótese de realização de licitações de ‘cartas marcadas’ nos órgãos públicos visando benefícios que deveriam se traduzir em apoio político. ‘Mensalão’ é metáfora para sugerir a repetição (mensal? qual a periodicidade?) na compra dos votos e apoio necessário.
O que está em jogo é menos uma questão de legalidade (pois muitas práticas consideradas anti-éticas não são necessariamente ilegais), mas uma questão político-ideológica visando a não reeleição de Lula.
O tratamento moral da política é via de mão dupla. Claro que ele está presente na recusa de um projeto explícito de poder no PT, numa certa facção do PT, se quisermos. Mas também está presente no pensamento dominante no Brasil, seja autoritário, seja liberal conservador. Ele pode ser sintetizado no bordão relativo à oposição mais conseqüente contra as esquerdas: não podem ganhar; se ganharem, não podem tomar posse; se tomarem posse, não podem governar; se governarem, devem ser retiradas do Governo.
É isso o que vivemos hoje: um tratamento moral da política para onde convergem governo (PT e a base aliada), oposição (PSDB e PFL) e especialmente a mídia.
Ocorre que um tratamento moral da política funciona como um bumerangue, pois volta com força e ímpeto nos termos de uma politização da moral. É o que estamos vendo hoje no Brasil com conseqüências que podem vir a ser funestas para todos.