Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A mídia e o circo de
mutretas da Fórmula 1






O Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (29/09) ao vivo pela TV Brasil discutiu o ‘circo’ da Fórmula 1. O ‘Cingapuragate’ – como ficou conhecido o recente escândalo envolvendo o piloto Nelsinho Piquet e a cúpula da escuderia Renault – abalou a credibilidade deste esporte que movimenta altas somas de dinheiro a cada temporada. No GP de Cingapura de 2008, o piloto bateu com o carro no muro propositalmente para beneficiar Fernando Alonso, seu companheiro de equipe. A ordem partiu de Flávio Briatore, diretor da escuderia. O ex-piloto



de F1 Nelson Piquet, pai de Nelsinho, denunciou a farsa à Federação Internacional de Automobilismo (FIA). A transcrição dos diálogos travados durante a corrida comprovou a armação.

Três jornalistas que cobrem o automobilismo participaram do debate ao vivo. No Rio de Janeiro, o convidado foi Celso Itiberê, colunista de Esporte do jornal O Globo, onde trabalha há 28 anos. Foi editor de Esportes, de Economia e Editor Executivo. Acompanha a Fórmula 1 desde os tempos de Emerson Fittipaldi. Em São Paulo, participaram Fábio Seixas e João Carlos Albuquerque. Seixas é editor-adjunto e colunista de Esportes da Folha de S.Paulo. Mestre em Administração Esportiva pela London Metropolitan University, cobre automobilismo há mais de dez anos. Já esteve presente em mais de 120 GPs. João Carlos Albuquerque apresenta os programas ‘Bate Bola’ e ‘Limite’, este sobre automobilismo, na ESPN Brasil. Trabalhou em rádio e televisão como repórter, comentarista e apresentador.


Antes do debate ao vivo, na coluna ‘A Mídia na Semana’, Alberto Dines comentou fatos de destaque dos últimos dias. A delicada situação dos meios de comunicação hondurenhos foi o primeiro assunto da seção. ‘Abaixo do Equador é difícil estabelecer claramente o que é legal e constitucional, mas quando se fecham veículos de comunicação fica tudo muito claro e transparente’, criticou. Em seguida, Dines citou a candidatura do Rio de Janeiro para sediar as Olimpíadas de 2016. ‘Se Lula ganhar, Lula é o cara e o Rio de Janeiro vai receber um empurrão que poderá ser decisivo para o seu futuro. Se Chicago e Obama ganharem, os Estados Unidos enterram de vez a era Bush’, avaliou.


O circo midiático


No editorial que precede a discussão no estúdio, Dines explicou que os próprios criadores da Fórmula 1 a designaram como ‘circo’. Para o jornalista, o ‘negócio’ tomou uma dimensão maior do que o esporte em si. ‘A mídia é uma espécie de varinha mágica: magnifica tudo, glamouriza tudo e não poucas vezes corrompe o que ela própria criou’, criticou. Dines considerou que na polêmica envolvendo o piloto Nelsinho Piquet, a mídia ‘finalmente encarou o perigoso negócio ao qual ela oferecia não apenas o seu tempo e o seu espaço, mas sobretudo a sua credibilidade’.


A reportagem exibida no Observatório mostrou as opiniões de profissionais que cobrem o setor. Lito Cavalcanti, comentarista da Sportv, acredita que o interesse no esporte não diminui, mas a confiabilidade da categoria sai do episódio abalada. ‘Este não é o primeiro caso. Todos os outros anos vêm sendo marcados por atitudes condenáveis – e condenadas até – absolutamente negativas para a imagem da categoria’, disse. A atual crise não é ‘ético-moral’ na avaliação de Flávio Gomes, colunista do Lance!. O jornalista destacou que o ‘Cingapuragate’ foi mais um grande escândalo.


Outros já ocorreram e os envolvidos foram punidos, como a espionagem entre a Ferrari e a McLaren e as disputas entre os pilotos Ayrton Senna e Alain Prost. ‘Na medida em que as coisas vão acontecendo no esporte – na pista e fora – é importante que sejam sempre apuradas, julgadas e condenadas’, avaliou. Para Lito Cavalcanti, o escândalo de Cingapura joga sombra sobre os protagonistas, mas não sobre a categoria. Em geral, os pilotos têm a desvantagem de serem ‘engolidos’ pela estrutura da Fórmula 1. Na opinião do jornalista, Nelsinho Piquet tem ‘100% de responsabilidade no que fez porque tinha a opção de não fazer’.


Interesses como combustível


Ernesto Rodrigues, autor de Ayrton – O Herói Revelado, avalia que aceitar uma ordem como a quer partiu de Briatore em nome da sobrevivência da equipe é ‘muito grave’. E destacou que o diretor da escuderia representava ‘o que de pior aconteceu na Fórmula 1 no processo em que se transformou em um gigantesco negócio’. Outros chefes de equipe ‘não são nenhuma Madre Teresa de Calcutá’, mas foram mecânicos, donos de oficina, pilotos. ‘O Briatore é um alpinista social que desembarcou na Fórmula 1 sem entender e gostar e sem o menor respeito pelo espírito esportivo’, criticou. ‘Em todo esporte que o dinheiro entra, ele melhora e piora’. A Fórmula 1 foi transformada pelo dinheiro. Hoje, é mais segura e espetacular. Assiste-se com muito mais detalhes, tanto em casa quanto no autódromo. Por outro lado, interesses altíssimos se manifestam, como no caso da Renault.


Para o jornalista Mair Pena Neto, faltou uma punição maior a Nelsinho. ‘Ele ficou muito como vítima neste episódio, mas foi um cúmplice’, disse. Mesmo não sendo o maior responsável pela farsa, merecia uma punição. A delação premiada não deveria ter sido aceita de forma natural. O caso merecia uma condenação geral do chefe da escuderia, do principal engenheiro, do piloto e da equipe. ‘Aí sim entraram alguns interesses da Fórmula 1 porque foi uma grande equipe, uma grande montadora e não existia o interesse da própria Fórmula 1 em criar muitos problemas e até ameaçar a permanência desta montadora no GP’, disse. A Fórmula 1 não tem ‘a exclusividade da falcatrua’, todas as modalidades esportivas estão cercadas de interesses econômicos.


O jornalista Reginaldo Leme, comentarista da Rede Globo, responsável pela notícia da fraude em primeira mão, comentou o episódio. ‘Esse momento do furo é muito bom porque quando você tem uma informação, apura daqui e dali e conclui que ela é verdadeira, aquilo vira dentro de você uma ebulição. É uma grande emoção saber que você está burilando alguma coisa para relatar e dar em primeira mão’, contou. Na Fórmula 1, assim como nos grandes clubes de futebol, a repercussão das notícias é muito grande. A FIA tem procurado aplicar punições severas na avaliação do comentarista, mas poderia ter negociado melhor a punição de Nelsinho Piquet.


Do fundo do quintal para as TVs


O debate ao vivo teve início com uma remissão histórica. Dines pediu a Celso Itiberê que rememorasse os primeiros passos do esporte. O jornalista explicou que a Fórmula 1 divide-se entre a ‘velha’, situada dos anos 1930 até a Segunda Guerra Mundial e a ‘nova’, que teve início a partir de 1950. As primeiras corridas eram heróicas. ‘Não havia escuderias, eram pequenos representantes em carros feitos no fundo de quintal, ajeitados na oficina do pai, do tio, do avô. Na verdade, a corrida era tudo. Ali se via quem era mais rápido, quem conseguia vencer. Era uma briga de talentos, de capacidade de ajeitar uma máquina’, contou.


Quando começaram as provas da ‘nova’ Fórmula 1, em 1950, o automobilismo ainda guardava o espírito dos primeiros tempos. Eram provas disputadas em aeroportos feitos para a guerra, que foram transformados em pistas de corrida. Ainda havia o espírito de competição pequena. ‘À medida em que a Fórmula 1 foi caminhando para uma cobertura de mídia mais intensa e, basicamente, a partir do momento em que a televisão entrou na Fórmula 1 é onde se tornou um esporte mundial’, explicou. Quando o espetáculo tornou-se mundial, chamou atenção primeiro das montadoras, pelo potencial da publicidade e, em seguida, dos patrocinadores.


‘Começou a injeção de grandes quantidades de dinheiro. Aquilo foi se transformando em um grande negócio que cresceu a ponto de, nos últimos anos, uma equipe de ponta, como a Ferrari e a McLaren, terem um orçamento de cerca de US$ 400 milhões por temporada. Virou um big business e o esporte passou a existir do momento em que apagam as luzes vermelhas até o momento da bandeira quadriculada’, disse. João Carlos Albuquerque avalia que a grande diferença entre o esporte no passado e o atual é que os atletas disputavam para ganhar a partida ou corrida. ‘A sensação que eu tenho de uns tempos para cá é a de que eles entram para ganhar dinheiro’, censurou.


Faltou punição?


O capitalismo ‘venceu em toda a parte’ na opinião do jornalista. ‘O dinheiro é capaz de coisas impressionantes. A disposição das pessoas em aumentar a sua conta bancária chega a atitudes irracionais’, disse. João Carlos Albuquerque citou como exemplo um recente caso de doping de integrantes de uma equipe de atletismo. O responsável pelos esportistas relatou que os envolvidos não estavam arrependidos pelo doping em si, mas sim decepcionados pela fraude ter sido descoberta. ‘Há inegavelmente uma inversão de valores’, disse. E criticou também a falta de punição de Nelsinho Piquet.


Fábio Seixas destacou que a farsa só veio à tona porque o piloto foi demitido da escuderia. ‘O circo recebeu um pouco de lama com o vazamento da notícia do caso de Cingapura do ano passado’, avaliou.Caso o piloto tivesse assinado um contrato de longo prazo, dificilmente seria revelada. O jornalista relembrou que quando assistiu à batida, chegou a considerar que o acidente pudesse ser proposital, mas concluiu que isto seria uma ‘estupidez que nunca aconteceria’. ‘Quantas outras mutretas e trapaças não aconteceram na Fórmula 1 e que a gente não soube porque não foi conveniente?’, questionou. Na opinião de Fábio Seixas, o trabalho na imprensa na Fórmula 1 é ‘complicado’.Os grandes investimentos empregados tornam difícil o acesso a informações extra-oficiais.


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Nada será como antes


Alberto Dines # editorial do programa Observatório da Imprensa na TV nº 522, no ar em 29/09/2009


Quem o designou como circo foram os seus próprios criadores e não os críticos. O automobilismo era uma competição entre arrojados pilotos e as fabulosas máquinas que desenvolviam, até que a invasão das escuderias, das fábricas, das petroleiras e principalmente da mídia transformasse tudo num imenso espetáculo global. E como sempre acontece com os espetáculos o negócio passou a ser mais importante do que o seu enredo.


A mídia é uma espécie de varinha mágica: magnifica tudo, glamouriza tudo e não poucas vezes corrompe o que ela própria criou.


O pseudo-acidente provocado por Nelsinho Piquet em Cingapura não foi a primeira infração. Foi a mais recente e, porque poderia ter resultado numa tragédia, foi a de maior repercussão.


A mídia finalmente encarou o perigoso negócio ao qual ela oferecia não apenas o seu tempo e o seu espaço, mas sobretudo a sua credibilidade.


O charmoso circo de repente ganhou o penoso sufixo herdado de Watergate e virou sinônimo de escândalo: Cingapuragate, Briatoregate ou Renaultgate.


Nada será como antes nos autódromos. E quem vai fazer a diferença será a imprensa. Se fingir que nada aconteceu, que não é com ela, o próprio circo da mídia pegará fogo.