Um dos efeitos mais salutares do processo de elaboração da Constituição de 1988 foi o fato de haver o seu resultado – com o acesso à justiça entendido numa dimensão mais ampla do que nas suas antecessoras – despertado as atenções da sociedade para uma instituição tradicional, mas que era lembrada mais quando se tinha em consideração a página policial ou quando se tratasse das crises de relações familiares: o Poder Judiciário.
Em função disto, o Direito passou a concorrer com o futebol em termos de palpites autorizados de leigos. Coloca-se sob o julgamento público – e é isto um salutar efeito da publicidade dos atos processuais, tanto os que se encontram materializados em papel, quanto os marcados pela oralidade, cabendo recordar que o sigilo constitui a exceção – e, muitas vezes, são emitidos juízos sobre as decisões que se tomam, juízos que variam desde aquilo que se pode compreender somente com o auxílio do juízo comum, passando pelos dados que somente se entendem quando se tem conhecimento técnico específico, até chegar aos que envolvem o conhecimento da própria história da Corte ao examinar casos semelhantes.
Falta de educação
Um exemplo disto foi a cobertura do recebimento da denúncia que inaugurou o Inquérito 2.245 no Supremo Tribunal Federal, quando pareceu formar-se uma espécie de senso comum em meio aos profissionais da imprensa quanto a caracterizar a foto tirada dos computadores de dois ministros do Supremo Tribunal Federal um furo jornalístico e a configurar a crítica a tal procedimento não só uma espécie de solidariedade em relação a quem o clamor público queria ver condenado e, ainda, uma espécie de desejo de retorno aos tempos da censura [‘Invasão de privacidade ou direito à informação?‘; ‘A tentação totalitária‘; ‘A imprensa no Tribunal‘; ‘A imprensa fez o que deveria fazer‘].
Reiteradas vezes procurei deixar claro que criticar a tese de que a imprensa pode exigir a um juiz que permita o acesso a o seu juízo antes do julgamento, quando isto é exatamente o que as leis processuais do país, para lhe resguardarem a imparcialidade, interditam que faça, sob pena de incidir em suspeição, passa a ser, por uma incrível inversão de valores provocada pela partidarização da cobertura, defender a parcialidade, o autoritarismo e a censura. Não se pretenda argumentar com a publicidade dos julgamentos, no caso. Não remanescem no STF ministros do tempo da argüição de relevância julgada secretamente, sem necessidade de fundamentação, que existiu de 1977 até 1988. E nenhum dos que criticaram a postura da imprensa defendeu o retrocesso a este estágio. A troca de idéias entre os ministros, ainda mais diante de um processo com 51 volumes e mais de mil anexos – como esclareceu a ministra Ellen Gracie em sua fala publicada no sítio do STF – é algo que não pode ser execrado, mas também não pode ser fotografado por sobre o ombro, conduta que, mesmo num lugar público, como, por exemplo, um restaurante, chega a ser considerada como falta de educação, pelo menos, pelo referencial que recebi.
Tributaristas e previdenciaristas
O fato de não dizer que tudo é permitido contra os denunciados não é solidariedade a estes, assim como a crítica ao devassamento da troca de e-mails entre os ministros – que poderia, inclusive, levar à conseqüência de, a cada julgamento, quem sabe, um juiz ter de consultar um órgão de comunicação (‘Quem devo condenar? Quem devo absolver?’) –, não implica um juízo de solidariedade com os indiciados. À mídia cabe, como disse Alberto Dines [‘Cobertura para entrar na história‘], fornecer as pistas, os dados, e informar como o julgamento se processa, mas não julgar o processo. Somente perante um Poder onde o contraditório é exercido com sacralidade e independência é que as tentações do totalitarismo se hão de esvair. Não esqueçamos o que fizeram regimes que resolveram excluir os seus atos de qualquer controle judicial, precisamente porque temiam o crivo de um terceiro imparcial.
Agora, diante do impasse criado pela negativa da prorrogação da Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras, com a perda de 40 bilhões de reais em termos de receita, o governo se voltou para o aumento da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido depois de o governo haver dito que não aumentaria impostos [‘A imprensa empacotada‘; ‘Imprensa não faz a lição de casa‘] –, comportamento que, por sinal, não constitui novidade, nem em termos do atual governo, nem em termos de qualquer outro que o tenha antecedido e que, como salientou Luiz Weis [‘Entorpecedora mesmice‘], não deveria causar surpresa. De fato, existe uma discussão entre os tributaristas e previdenciaristas acerca de ser ou não a contribuição previdenciária um tributo e se seria ela ou não espécie do gênero imposto, que nem mesmo a Constituição de 1988 pôde sanar, embora dando-lhe tratamento especial.
Parâmetro não é gosto pessoal
Curioso é que o governo se tenha, aqui, aproveitado de uma controvérsia que já era travada desde o período em que estávamos sob a Constituição de 1967, quanto a constituir ou não a contribuição social tributo e que tenha verificado que, dentre as exações, não está sujeita ao disposto na letra ‘b’ do inciso III do art. 150 (dirigido aos tributos em geral – impostos, taxas, contribuições de melhoria), mas sim, ao disposto no § 6º do art. 195 da CF (dispositivo especial, dirigido a contribuições para previdência). Creio que estes, para além dos gostos, é que são os termos do debate a ser travado. Mas vamos adiante.
De outra parte, emerge uma questão sobre a possibilidade de majoração das alíquotas de impostos sem passar pelo crivo do Congresso Nacional. Somente está excepcionado o princípio da estrita legalidade para aumento dos seguintes impostos: o imposto de importação, o imposto de exportação, o imposto sobre produtos industrializados e o imposto sobre operações financeiras; de acordo com a norma excepcional posta no § 1º do artigo 153 da Constituição Federal, por sinal, as controvérsias estão a se dirigir mais a este último – este, sim, sem sombra de dúvidas, passível de debate político acerca da promessa de não aumentar impostos. E, por outro lado, é de se verificar que o controle de constitucionalidade por parte do Poder Judiciário não se faz tomando em consideração a bondade ou maldade intrínseca da medida, mas sim, se ela se encontra autorizada ou não pela Constituição Federal – isto é, o parâmetro não é o gosto pessoal, mas sim, a existência de uma norma jurídica de nível superior perante a qual será a norma impugnada válida ou inválida.
Globo, Estadão e Folha
Ao ler o texto de Rolf Kuntz [‘A `versão Marta´ do pacote de impostos‘], identifiquei o caráter monetarista da medida adotada, colocando, realmente, a mídia representada pela Veja, pelo Estado de S. Paulo, pelo Globo e pela Folha em perplexidade, dado que o demônio de sempre fez o que ela mesma considera um dever diante de Deus…com efeito, eis o que ali consta:
‘A imprensa descobriu o ‘lado bom’ do aumento de tributos anunciado pelo governo federal no dia 2 de janeiro: encarecendo o financiamento ao consumo, o IOF mais alto poderá ajudar no combate à inflação. Pode-se, portanto, relaxar e até desfrutar como algo prazeroso o novo achaque tributário. Mas convém fazê-lo sem perder a compostura e, sobretudo, sem desligar o desconfiômetro.
Três dos jornais mais importantes do Rio de Janeiro e de São Paulo – Globo, Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo – destacaram, no domingo (6/1), o possível efeito antiinflacionário do novo pacote. As três abordagens foram diferentes.
O Globo deu na primeira página uma chamada de uma coluna e abriu o caderno de Economia com análises de economistas do setor privado e da universidade. As opiniões variam, mas, de modo geral, os especialistas admitem uma restrição da demanda, seja por efeito da contenção de gastos, seja em conseqüência dos novos aumentos de tributos, seja pela combinação dos dois fatores. Ninguém atribui ao governo uma combinação planejada de arranjo fiscal de emergência e prevenção da inflação.
O Estado tratou do assunto em manchete, como tema principal do dia, e apontou a contenção do consumo como um dos objetivos do aumento do IOF. Segundo a reportagem publicada no caderno de Economia, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, apresentou esse argumento ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na reunião da quarta-feira (1/1), presumivelmente para defender a proposta de elevação do imposto. Antes do encontro com Lula, a idéia, de acordo com o relato, foi apresentada ao presidente do Banco Central (BC), Henrique Meirelles, e este ‘concordou’. O possível efeito antiinflacionário do pacote corresponde, portanto, à ‘visão do Ministério da Fazenda’.
A Folha contou uma história um pouco diferente , na página 3 do caderno Dinheiro. De acordo com essa versão, o presidente do BC foi quem explicou ao presidente Lula o possível efeito benigno das medidas tomadas para compensar parcialmente a perda da CPMF, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira. ‘Segundo Meirelles, sem as medidas a política monetária teria de ser mais conservadora’, contou a reportagem da Folha. Explicação acrescentada pelos autores da matéria: sem aqueles aumentos de tributos, seria maior a possibilidade de elevação da taxa básica de juros, a Selic, hoje em 11,25% ao ano.’
Erros elementares
O suposto caráter benéfico da contenção do consumo é um dos pontos fundamentais do credo monetarista, que, como bem sabe o professor Rolf Kuntz, era o defendido por Roberto Campos e foi sendo adotado como filosofia de combate à inflação desde o movimento militar de 64. Mesmo depois da redemocratização, não foi abandonado o monetarismo, como já comentei em outra ocasião neste mesmo espaço [‘Fatos não mostram mudança‘; ‘Tréplica do leitor‘]. baseado tanto em Avelãs Nunes como em Washington Peluso Albino de Souza – ambos juristas referenciais, além de conhecedores profundos da ciência econômica. O dado econômico é de mais fácil cobertura jornalística, dada a experiência acumulada pelos jornalistas [‘Surrealismo midiático nacional‘], ante o prestígio que o economista veio a assumir em face do declínio do bacharel em Direito.
Deixo claro que não estou a emitir tese a respeito de serem ou não constitucionais as medidas em si mesmas, mas sim, a informar alguns pontos que devem ser tomados em consideração para quem pretenda fazer uma cobertura responsável destes processos.
Quanto à necessidade de afinar o ‘juridiquês’, realmente é bom mesmo que a imprensa o faça, sobretudo para não incidir em erros elementares.
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Advogado, Porto Alegre, RS