Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A mídia entre verdades e versões

No período de 8/4/2008 a 22/4/2008, escrevi, para este Observatório, quatro artigos a respeito do ‘caso Isabella’. Quase dois anos após, uma vez decretada a pena a ser cumprida pelos condenados, cabem algumas observações sobre o ‘conjunto da obra’. Antes, porém, fique claro que a condenação dos réus era (e é) inquestionável. Jamais tive dúvida quanto à participação exclusiva da madrasta e do pai na morte da criança. Isto posto, o que me instigou à presente escrita é a moldura dentro da qual o quadro recente foi alocado.

Uma coisa é certa: a semana e o mês escolhidos para o julgamento foram de uma perfeição cirúrgica. Inicialmente, entendamos que, para a mídia, o que mais interessa é drama (ou tragédia) envolvendo classe média. Média e mídia formam par perfeito. Ricos não consomem produtos midiáticos. Eles têm outras opções. Aos pobres (até quereriam) falta tempo e dinheiro. Quem, todavia, está no ‘meio’ encontra nos ‘meios de comunicação’ o ‘bezerro de ouro’ ao qual presta reverência. Sob essa ótica, a semana de 22 a 26/03 caiu como uma luva (com permissão para o uso do clichê).

Virtude e corrosão

Dois meses antes (janeiro), a classe média está dispersa: férias escolares, viagens, relaxamento, alto verão… muito sol, praia, festas, churrascos e cerveja a rodo. Fevereiro, além da extensão das férias, há o acréscimo do Carnaval… festa nacional. Início de março não é bom. As famílias ainda estão às voltas com compras de material escolar, retomando a rotina dos afazeres e, de quebra, ainda um sol convidativo para prolongar, o mais possível, o bronzeamento adquirido. Bem, no dia 22/03, oficialmente, o verão acabou. A data já determina o início do outono. Para completar, há, ainda, o vaticínio de Tom Jobim nos versos ‘são as águas de março fechando o verão/ é promessa de vida no meu coração/ É pau… é pedra… é o fim do caminho/…/’. Uma semana após, eis que o julgamento conflitaria com o desfecho do que promete ser a última edição do BBB (ou como, há algum tempo, no próprio OI, nomeei de Pig Brother.

Se o julgamento fosse para abril… nem pensar! Com os generosos feriados que nos aguardam? Sem falar que 30 de abril é a data-limite para entrega (expedição) da declaração de renda. Em maio, terá início a comoção nacional: rumo à Copa do Mundo. Ao término da Copa, estaremos iniciando a arrancada para as eleições majoritárias. Acho que fui claro. O julgamento preencheu, na exata medida, o vácuo possível para, em torno dele, se criar a lógica dos interesses mútuos (média e mídia). A propósito, esclareço, de antemão, não pertencer à classe rica. Se assim fosse, estaria fazendo qualquer outra coisa, e não escrevendo um artigo.

Menos ainda situo-me na classe pobre. Se nela estivesse, não teria como participar deste fórum, por absoluta falta de ‘ferramentas’ disponíveis e de tempo útil para ler, pensar, escrever… Estou, sim, incluso no amplo arco da ‘classe média’, ou seja, posso conhecê-la, desde o berço, em suas entranhas, tanto para identificar-lhe a virtude produtiva quanto a corrosão destrutiva. Descontadas as exceções, o rico tem a altivez e a soberba próprias de quem com nada e ninguém se envolve. O pobre, por sua vez, guarda consigo certa candura, docilidade e carências de toda ordem.

Em tempo: o pobre que migra para a violência e marginalidade em nada difere daqueles seres violentos e marginais que se situam nas classes média e rica. O pai e a madrasta pertencem à classe média. Nero e Calígula eram imperadores despóticos. Mussolini e Hitler reuniram, em suas mãos, o poder máximo para o exercerem em nome do que há de pior. Stalin não foi diferente quando se sentiu poder supremo. Todos exterminaram quanto desejaram. Então não é por aí.

Equívoco foi sustentar a inocência

O ‘classe média’ específico, que tem algo a mais no bolso do quanto menos contém no cérebro, é quem se sente preparado para opinar sobre tudo, sentenciar sobre qualquer coisa e pronto para elucidar todos os enigmas da vida. É o perfil perfeito que o pensador espanhol José Ortega y Gasset prefigurou no ‘homem-massa’ (cf. A Rebelião das massas). Também este é o tipo predileto para ser o alvo da mídia. A partir daí, vamos ao ‘julgamento’.

Sabe-se que o senso comum tem profundo fascínio por quem lhe promete a ‘verdade’. Igualmente sabido é o fato de ser a mídia, na prevalência da cultura de massa, o porta-voz do que o imaginário societário tanto deseja. Os jornais não pouparam espaços para, antes e depois da condenação, ‘venderem’ para os autores do crime a imagem de ‘monstros’. Qualquer ser humano se sente chocado em imaginar um pai jogar a própria filha pela janela. Até aí, não há do que discordar.

A questão embaralha a partir do momento em que o senso comum e a mídia abstraem os aspectos psicológicos (e, em parte, psicóticos) dos agentes diretamente envolvidos. Os jornais deveriam ter explorado a riqueza dramatúrgica contida no fato. O casal vivenciou uma situação típica dos enredos de Ésquilo e, ainda mais, de Sófocles e Shakespeare. Paixões desenfreadas arrastaram seres frágeis e descentrados a uma ‘fúria incontida’, seguida de ‘pânico arrebatador’. Ao contrário, os jornais e programas de TV ativeram-se, sempre, ao que recebiam pronto: a cronologia dos fatos, os laudos periciais, os depoimentos de advogados e promotores. Enfim, a velha e surrada fórmula jornalística reinante no Brasil: a imprensa não produz matérias; reproduz conteúdos que outros fornecem.

Uma pessoa com algum preparo e boa dose de sensatez deduz que, em hipótese alguma, o crime foi premeditado. O grande equívoco da defesa, dos acusados e de seus familiares foi o de sustentarem a inocência, insistindo na versão inverossímil de uma desconhecida terceira pessoa. Em que trama trágica, portanto, o casal se viu preso? Para começar, o destino (ou o acaso da vida) fez um jovem atribulado e sustentado pelo pai viver duas uniões com mulheres de idêntico nome (Ana Carolina). O problema também se estendeu para a segunda, portadora que era de intenso ciúme e acentuada agressividade. Com dois filhos pequenos para criar e mais a presença, de tempo em tempo, da enteada de sua rival homônima.

Mídia rendeu-se a cenário tosco

Por quanto tempo, Anna Carolina Jatobá terá armazenado inconformismo, insegurança e sentimentos afins? Eis que o ‘o dia de fúria’ se apresentou. Com três crianças pequenas no carro, a enteada, como é próprio da idade, devia estar irrequieta ou queixosa e… o início do fim trágico: a madrasta, num primeiro gesto de incontrolado nervosismo, deu um tapa na criança. Provavelmente, um objeto contundente (anel ou chave), mesmo sem intenção, fez sangrar a fronte da menina. E agora? Como entregar a criança de volta à mãe com aquele ferimento?

O pai subiu com a menina, tentando estancar-lhe o sangue. A madrasta, por sua vez, ainda mais descontrolada por ver o que causara. Chegam todos ao apartamento. É presumível que Isabella estivesse ainda mais chorosa e queixosa, o que potencializou, na madrasta, o descontrole. Daí adveio o desenlace: a madrasta terá sacudido a menina que não parava de chorar e/ou gritar. No auge da ‘fúria cega’, a madrasta praticou o ato no qual estava a memória acumulada de todo o desconforto daquela convivência. Esganou, a exemplo de Othelo, na peça de Shakespeare. Levado pela paixão devastadora, o rei mouro, asfixiou, com o travesseiro, Desdêmona, acreditando ter sido por ela traído, com base, apenas, numa falsa e caluniosa ‘prova’. No caso Isabella, não se trata de calúnia ou de falsa prova. O elo entre os dois é a fúria impetuosa.

A madrasta, sem identificar a diferença entre desmaio e morte, ficou desbaratada. O pai, por sua vez, diante do quadro exposto, em absoluto estado de desconexão, e tomado pelo horror, a exemplo de Édipo, na peça de Sófocles, ao saber (sem a devida consciência) que matara o próprio pai e se casara com sua mãe, na certeza da morte da filha, tentou não perder tudo: jogou, pela janela, a filha ‘morta’. Ao final, o que se tem é um cenário de esgarçamento familiar, somado à fragilidade emocional e acrescido de mediocridade cultural.

A rigor, não há ‘monstros’; há subjetividades deformadas e acostumadas a terem tudo, sem jamais serem cobradas. Resultado? Ceifaram um projeto de vida e arruinaram, ainda jovens, suas existências. Se os habitasse um mínimo de discernimento, os dois (ou um deles) teria(m), em alguma instância do julgamento, contado a verdadeira situação. Como conseqüência, a pena abrigaria atenuantes. Todavia, a personagem trágica não é parceira da coragem, bem como se faz refém da ‘trama do destino’. Por ser trágica, tem de errar do início até o fim.

Do exposto, pode-se extrair uma conclusão: já que a mídia optou por dar tanta visibilidade e notoriedade ao caso, poderia (e deveria) tê-lo feito em favor da elevação qualitativa de seu público-receptor. Ao contrário, rendeu-se ao formato mais empobrecedor, servindo de alavanca para produzir mero efeito emocional que redundou em tosco cenário, nos arredores do fórum de Santana, onde se aglomeravam ‘torcidas organizadas’, transformando em ‘celebridades’ os avós maternos, o promotor e a mãe, bem como em ‘fantasmas do mal’ os avós paternos e os advogados de defesa. Um quadro deplorável a traduzir a cumplicidade perfeita entre um modelo midiático e, a este, um público afeito.

Tudo comandado pela fórmula de uma lógica binária, herdeira do autoritário maniqueísmo cujas raízes reportam à Idade Média.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da FACHA (RJ) e articulista