As eleições de 2006 sinalizam um importante avanço histórico em nosso país: a grande mídia entrou – finalmente – na agenda de discussão pública. Houve outros momentos no passado – eleições para governador no Rio de Janeiro em 1982; campanha das Diretas Já em 1984; debates presidenciais em 1989 – em que o tema ganhou dimensões públicas. Mas nada como agora.
E quais seriam as razões para que a grande mídia e seu papel na democracia brasileira tenham alcançado a agenda pública?
Certamente uma dessas razões tem sido o deslocamento entre a posição – declarada ou não – da cobertura política da grande mídia e o pensamento da maioria da população brasileira. Isso porque, ao contrário do que a própria mídia indicava, esse deslocamento vem se dando não só em relação aos muitos milhões de brasileiros de baixa renda beneficiários do programa Bolsa Família, mas também em relação a importantes segmentos das classes média e rica, constituindo uma maioria considerável de mais de 60% da população brasileira.
No programa Observatório da Imprensa na TV de 24 de outubro, o jornalista Alberto Dines lembrou que os colunistas da grande mídia são seus porta-vozes. Eles são profissionais escolhidos para falarem pelas empresas de comunicação.
É fácil constatar, por exemplo, que quando se desenvolve alguma divergência entre colunista e empresa – vide os casos recentes de Franklin Martins e Helena Chagas – eles não têm seus contratos renovados ou são demitidos. Dessa forma, a posição desses colunistas adquire uma importância ainda maior.
Blindagem trincada
Vale lembrar o resultado do acompanhamento das colunas desses jornalistas feito pelo Observatório Brasileiro de Mídia (ver ‘Os colunistas são imparciais?‘) durante o primeiro turno das eleições presidenciais. Realizado no período de 6 de julho a 29 de setembro, o acompanhamento revela como os 14 principais colunistas dos cinco principais jornais de referência nacional – Folha de S.Paulo (4), O Estado de S.Paulo (2), O Globo (4), Jornal do Brasil (2) e Correio Braziliense (2) – trataram a cobertura dos quatro principais candidatos à Presidência da República.
Como já havia sido verificado nas análises da cobertura política (reportagens), Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi o candidato mais citado e também o que recebeu maior número de menções negativas. Somadas às menções negativas sobre a figura de Lula presidente, o número chega a ser quase quatro vezes maior que o número de menções para Geraldo Alckmin (PSDB).
Se considerarmos individualmente a posição de cada um dos 14 colunistas, somente um demonstrou equilíbrio entre as análises positivas e negativas com relação ao candidato Lula e apenas um teve mais análises positivas do que negativas.
Desnecessário reafirmar que os colunistas têm o direito de escrever o que bem quiserem (desde que não confrontem a opinião editorial dos seus empregadores).
O que nos interessa aqui é outra questão.
Os desequilíbrios da cobertura política e de seus principais colunistas não estariam nos introduzindo em um terreno – o da credibilidade – que até agora tem sido blindado pela grande mídia em sua própria proteção?
Debate bem-vindo
Em artigo publicado no auge da crise política (‘Questão de método: ABC da capitulação’, Valor Econômico de 23/6/2005, p. A-6), o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos avançou a hipótese de que nas ‘democracias de instituições vulneráveis a extorsões’, seria grande o poder da mídia de gerar instabilidade política. Já nos países de democracias estáveis, ao contrário, ‘pouca coisa acontece fora da arena eleitoral, exceto quando o escândalo revela a ruptura, por parte do governo, do pacto constitucional do país’.
Segundo ele, nas democracias estáveis a grande mídia nacional ‘enfrenta concorrentes a nível estadual e local, algo inexistente na América Latina, cuja opinião pública é controlada por dois ou três jornais nacionais em cada país’. Essa concorrência regional e local faria com que a grande mídia, tenha ‘reduzidíssima capacidade de afetar a estabilidade institucional’. Dessa forma, restaria a ela ‘uma única carta na tentativa de pautar os governos: sua credibilidade profissional’. Nas democracias de instituições vulneráveis, por outro lado, a questão da credibilidade – dada a ausência de concorrência regional e local – ficaria para segundo plano.
Creio que a cobertura que a grande mídia ofereceu da última campanha eleitoral fez com que a questão da credibilidade chegasse finalmente ao Brasil, independente de existir ou não concorrência verdadeira nos níveis regional e local para ela em nosso país.
A postura escancaradamente partidária de alguns veículos que insistem em reafirmar sua imparcialidade, o debate iniciado pela CartaCapital em função da cobertura do chamado ‘escândalo do dossiê’, e as evidências de que o debate sobre o papel da mídia chegou à periferia dos grandes centros urbanos, não deixam dúvida de que o que está em jogo agora é a credibilidade do jornalismo produzido pela grande mídia.
Esse debate tardio só pode ser bem-vindo e quem ganha com ele é a democracia brasileira.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: crise política e poder no Brasil (Editora Fundação Perseu Abramo, 2006)