Já não persistem dúvidas de que a imprensa brasileira vive uma crise inédita de credibilidade. Infelizmente, o diagnóstico tende a resultar inofensivo, pois as análises hegemônicas minimizam o problema. As raras abordagens contundentes embaralham-se em equívocos conceituais, reproduzindo expressões tipo ‘mídia burguesa’, que apenas empobrecem o debate. Os maus jornalistas adoram ser confrontados por um simplismo vingativo que oferece acusações pobres (‘complô das elites’) e pressupõe uma hipotética ‘mídia proletária’ como antagonista possível ou desejável. Enfrentemos o problema sem cair nas armadilhas ideológicas que concorrem para imortalizá-lo.
Projetos de poder, mesmo inegavelmente marcados por afinidades de classe, aglutinam uma complexidade de interesses que supera esse âmbito restritivo. As demandas corporativas do grande empresariado coincidem, e não há instância democrática que o impeça de mobilizar-se para realizá-las (guardadas as ressalvas legais). Sejam órgãos de comunicação ou equivalentes em outros setores produtivos, é previsível que determinados grupos atuem por plataformas partidárias semelhantes, beneficiando os mesmos agentes políticos – basta comparar as listas dos maiores investidores privados em publicidade e em certas candidaturas para descobrir uma intrigante coincidência de aspirações.
Mas essa constatação, compreensivelmente assustadora a alguns puristas, ainda não ilumina uma verdadeira promiscuidade. É improdutivo condenar a parcialidade da imprensa como evidência de contaminações inconfessáveis ou mesmo criminosas. Não há um átomo de independência nas escolhas que permeiam o cotidiano editorial, nem seria sensato exigi-la de qualquer atividade sob o escrutínio humano. O vício que originou a desmoralização dos grandes veículos sobressai justamente na tentativa de negar esta circunstância.
Embora destruída há décadas no meio acadêmico, a ilusão da imparcialidade jornalística persiste, e sintomaticamente, em redações que hoje se vêem embaraçadas diante da opinião pública. A insistência em esconder obviedades é característica dos manipuladores: a mentira consuma-se através da afirmação de sua veracidade. Quando a mídia tradicional finge uma independência absoluta, impossível por definição, ultrapassa o limite entre jornalismo e propaganda dissimulada. Num ambiente de polarização ideológica, que deveria incentivar a transparência, a imprensa torna-se suspeita ao adotar a hipocrisia para (não) explicar suas opções.
Tribuna gratuita
Sob os rigores de uma justificada desconfiança, a cobertura jornalística do primeiro governo Lula exibe um viés antidemocrático inegável. A importância desse desvio será medida apenas pela historiografia vindoura, quando não for mais possível fingir que nada aconteceu. No calor dos fatos, cabe-nos apontar criticamente os desvios cotidianos da imprensa, na esperança de constrangê-la através do esclarecimento de seu público-alvo.
Segundo levantamentos criteriosos, o presidente e candidato Lula ocupou neste ano uma área impressa cerca de 20% menor que FHC em 1998. O Lula oposicionista de então recebeu menos da metade da visibilidade concedida a Geraldo Alckmin. Não pode ser simples coincidência. Tempo e espaço são determinantes na apreensão imediata da informação, conferindo-lhe relevância e continuidade. O próprio noticiário sabe aproveitar a hierarquia valorativa de horários, cadernos e espaços, utilizada para estabelecer os custos da publicidade: matérias críticas aos partidos oposicionistas ocupam áreas menos ‘nobres’ (sem imagens), enquanto o governo federal e o PT são tratados de maneira inversa. É fácil lembrar dos rostos de Hamilton Lacerda e Freud Godoy, mas quase impossível reconhecer Abel Pereira ou Barjas Negri.
Manchetes flagrantemente mal-intencionadas preencheriam volumes. Piores são as que embutem uma carga pejorativa (‘Fulano nega ser criminoso’), reproduzem afirmações de terceiros (‘Cicrano acusa Beltrano’) e levantam suspeitas sem comprovação (‘Polícia investiga…’). O estratagema é ardiloso, pois causa danos irreversíveis à imagem das vítimas e isenta os veículos de responsabilidade direta. Escorado pela artimanha da reprodução desinteressada, o noticiário tendencioso desempenha um papel estratégico na difusão da agenda oposicionista, que tem nele sua tribuna gratuita. Dizem que tudo é uma questão de prioridade, e só podemos concordar. Mas prioridade para quem?
Nudez vergonhosa
Não abandonemos os questionamentos desconfortáveis, que não perdem relevância apenas porque continuam sem respostas. Havia mesmo ‘interesse público’ em divulgar, na antevéspera das eleições, as fotos do dinheiro que compraria o dossiê? Que embasamento jurídico tiveram as prisões efetuadas no hotel paulistano? Afinal, qual o conteúdo do dossiê? Por que não informar que a esmagadora maioria das compras do esquema dos sanguessugas foi realizada na gestão FHC? Por que reproduzir a palavra ‘mensalão’, se o pagamento a partidos aliados não teve esta ou qualquer periodicidade? Por que omitir que Marcos Valério iniciou suas atividades escusas junto ao PSDB mineiro? Se o filho de Lula não possui concessão televisiva, por que insistir na expressão ‘TV do Lulinha’? Como ignorar o absurdo inquérito que caracterizou a morte do ex-prefeito de Campinas como crime comum e, ao mesmo tempo, combater o desfecho do caso Celso Daniel?
E onde estão as vozes dissonantes? Quando alguém aponta sarcasticamente o ‘silêncio da intelectualidade petista’, sem querer ilumina o cerne do problema: ela está silenciosa porque foi afastada dos debates. Apenas tal percepção, que deveria parecer terrível às índoles democráticas, explica a profusão de idiotices veiculadas sob uma conveniente fachada analítica. Não confundamos liberdade de opinião com panfletagem.
Os comentaristas econômicos, que defenderam incondicionalmente as privatizações em pleno embate eleitoral, sabiam o que estavam fazendo; também seus colegas que vomitaram a inaceitável falácia ‘o segundo turno é uma nova eleição’. Chamar Lula de ‘presidente macunaímico’, os folhetos sobre realizações do governo de ‘cartilhas’, os protestos dos operadores de vôo de ‘apagão’ e o PT de ‘viciado em corrupção’ fazem parte dessa miríade de asneiras diárias, que se sabem impunes por falta de antagonismo.
Tentando reforçar sua pretensa superioridade moral perante concorrentes e críticos, parte da mídia intimida-os com a pecha de autoritários e ‘lulo-petistas’ – uma falsa polarização que visa impedir o questionamento. A imprensa só restabelecerá sua credibilidade quando assimilar a pertinência do contraditório e admitir que está sujeita às mesmas normas jurídicas e morais que a protegem. Indivíduos e organismos que se sintam minimamente atingidos pelo mau jornalismo têm obrigação ética de acionar o Judiciário para cobrar reparações e coibir danos futuros a inocentes. Quando possível, o teor dessas ações precisa ser divulgado. E todos os canais disponíveis, principalmente na internet, devem ser utilizados para expor a nudez vergonhosa dos veículos de desinformação.
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Historiador e escritor, colaborador da revista Caros Amigos (www.guilherme.scalzilli.nom.br)