Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A mídia, o perdão, a vingança e a justiça

O perdão é a capacidade de superar a violência sofrida, vê-la sob outra perspectiva e seguir adiante. Ato solitário, de foro íntimo, é expressão de livre vontade, geralmente fruto de longo amadurecimento e demorada reflexão. Obviamente, pertence ao campo das relações privadas. O perdão não tem como ser regulado. Não há nada nem ninguém que possa obrigar fulano a perdoar beltrano. Em circunstâncias específicas, o perdão apresenta dimensão pública. Quando isso ocorre é porque as partes envolvidas são famosas ou exercem forte impacto na vida da comunidade.

Ainda que seja resultado de decisão indelegável e fortemente influenciado por características pessoais e idiossincrasias, o perdão é exaltado por várias crenças morais e religiosas. É celebrado como virtude elevada e caminho para evoluir espiritualmente. Perdoar também é comportamento incentivado por diversas correntes terapêuticas, que nele enxergam benefícios para a vida emocional e psíquica e até para a saúde física. Já se disse que ‘o perdão cura’.

Mesmo assim, na nossa sociedade, perdoar ainda não é a atitude mais esperada de uma pessoa que sofreu alguma perda ou dano grave causado por outrem. Muitas vezes o perdão é confundido com sentimentos como a apatia, a fuga, a fraqueza, a covardia, a rendição ou o medo, todos eles estratégias bastante débeis para reagir diante dos acontecimentos. O fato é que o perdão verdadeiro continua tido como produto raro, acessível a poucos, já que requer o acesso a recursos quase sempre escassos no mercado tradicional de emoções, como a compaixão e a empatia, por exemplo.

Trajetória oscilante na zona cinzenta

A vingança, por sua vez, é a devolução direta ao agressor, na mesma proporção, ou em medida superior, do dano sofrido pela vítima: olho por olho, dente por dente. Embora ela não goze de grande prestígio entre os doutrinadores morais e religiosos, a vingança tem apelo popular. Bastante conhecida, não há quem não entenda o que ela significa e quais são os efeitos que é capaz de gerar. Muitas das obras clássicas da literatura universal e do cinema seriam frágeis e opacas se não fosse possível retratar a vingança.

Em diversas ocasiões, a vingança parece necessária e pedagógica, mas é algo distinto. A vingança tem aparência de justiça, mas não é justiça. Apesar de atraente, ela jamais poderá ser aceita tranquilamente na arena pública. Apesar de sedutora, ela nunca poderá incorporar-se, mansamente, ao conjunto de práticas admitidas pelas sociedades democráticas para reprimir condutas indesejadas, já que contesta a força da lei e as soluções que ela propõe.

A vingança tampouco pode ser classificada como pertencente ao domínio exclusivo da vida privada. A vingança descreve trajetória oscilante, freqüenta a zona cinzenta, passeia pelas sombras. Dependendo de seu conteúdo, ingressa na marginalidade e deve ser combatida com firmeza.

Manifestações imaturas e revanchistas

Por fim, a justiça. O conceito de justiça aqui focalizado é unicamente o da justiça implementada pelo Direito. E mais nenhum outro, já que as definições de justiça são tão numerosas quanto as palavras de ordem cantadas para evocá-la. A justiça não é o hino composto pela ira ou por paixões incontroláveis. A justiça não combina com histeria ou perseguição. A justiça é a expressão da racionalidade. É a resposta serena, organizada, institucional e coletiva que a sociedade dá a todos os que violam os bens juridicamente protegidos, entre os quais a vida é o mais importante. A justiça é um dos valores máximos buscados por toda a produção normativa. Ela é fundamental para a vida em comunidade. Da sua promoção vigorosa e efetiva depende o sucesso do projeto de convivência social. A justiça é sinal de vitória da civilização sobre a barbárie.

A justiça restaura o equilíbrio nas relações entre os cidadãos, restitui os direitos lesados e distribui conseqüências penais aos causadores de infrações ou crimes. Ela é um dos princípios que devem orientar a ação do legislador, do magistrado e do gestor governamental. Baseada em regras redigidas com precisão e que servem igualmente para todos, a justiça não pode ser casuística nem oportunista, devendo ser obtida por meio da aplicação técnica, competente e isenta dos mandamentos legais ao caso concretamente analisado.

A mídia, por sua vez, não precisa ter qualquer compromisso com as visões de mundo representadas pelo perdão ou pela vingança. Ela não tem a menor obrigação de divulgar o tema do perdão, mas não pode, igualmente, fazer apologia de comportamentos vingativos ouparalegais, o que traria insegurança às pessoas e poria em perigo a estabilidade das relações que elas estabelecem.

O argumento de que a polícia é corrupta ou de que o Judiciário brasileiro é lento, caro, burocrático e muitas vezes ineficaz não pode servir de desculpa para o incentivo a manifestações imaturas e revanchistas. Se o poder público trabalha pouco e mal, é preciso pressioná-lo com tenacidade e veemência, diariamente, para que cumpra corretamente o seu dever. A mídia não pode, sob nenhum argumento, incitar o povo a querer substituir os órgãos competentes do Estado em sua função de reprimir o ilícito.

Perversa e desleal

É inadequado protestar contra a impunidade criando personagens, situações e contextos narrativos que ensejem o linchamento, o pré-julgamento ou a condenação sumária. É ardiloso e vil selecionar bodes expiatórios entre alvos fáceis, sem padrinhos com força política ou econômica suficiente para blindar a sua reputação. Há processos judiciais (alguns estrelados por banqueiros e empresários) de interesse público infinitamente superior ao dos casos badalados na imprensa e que nunca ocuparão as manchetes da mídia.

Aos meios de comunicação de massa, tratados pela Constituição Federal de 88 em capítulo específico, cabe disseminar a importância da justiça, suas vantagens como instância legítima para resolver conflitos e as informações corretas sobre como desenvolve suas atividades e quais são seus princípios, sua razão de ser, sua estrutura, sua composição. É isso que exige a lógica do ordenamento jurídico a que a mídia está submetida e que possibilita o seu funcionamento em uma democracia política como a brasileira.

Os meios de comunicação de massa devem exercer função esclarecedora e educativa. Devem promover a cidadania e ajudar o povo a entender corretamente os eventos do cotidiano, ainda que eles se apresentem confusos, obscuros ou complicados. A mídia deve gerar luz e não calor, mesmo que com isso venda menos. A mídia que prefere seguir a rota mais cômoda, explorando os instintos mais primitivos e a porção mais rude do ser humano é perversa e desleal. Busca o pior. Com grandes chances de alcançá-lo.

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Advogado, jornalista, mestre em Direito Internacional (UFMG) e doutorando em Direito Internacional (Universidade Autônoma de Madri)