A edição de abril de 2010 da Revista de História da Biblioteca Nacional traz uma entrevista com Mary Del Priore. A historiadora já se dedicou a vários temas. Destacamos, nessa entrevista, suas reflexões sobreo impacto das novas mídias no trabalho dos historiadores. Vejamos:
‘Quando olhamos o passado, procuramos de alguma maneira construir um sentido, uma verdade. É claro que essa é apenas uma verdade possível em cima de determinada combinação de documentos. Sendo assim, o que nós temos hoje é uma valorização excessiva e um pouco perversa de imagens holográficas. Porque tudo aquilo que a internet, a comunicação, nos permite é basicamente criar representações. Paul Ricoeur nos lembra que somos as nossas próprias narrativas. Hoje, em uma sociedade em redes onde as telecomunicações estão cada vez mais aceleradas, nós recebemos todas as notícias através do telefone celular. É bom o historiador lembrar que essas coisas são também representações. Que elas não são a `verdade´, mas que são `uma verdade´. E aí está um dos papéis do historiador: discutir sobre os limites entre a realidade e a ficção’ (RHBN nº 55, p. 53-54).
A historiadora acerta em dizer que a discussão sobre o que é realidade e ficção é um dos papéis do historiador. Quando, se referindo aos avanços das telecomunicações, a autora afirma que essas coisas são representações e que se tratam de uma verdade, ou de uma versão dos fatos, acaba por evidenciar um debate intrincado.
Existe uma posição relativista, também tratada como relativismo pós-estruturalista, que vai além de um fato ter várias versões. Extrapola para o âmbito de não haver diferença entre realidade ou ficção. Temos também um posicionamento já ao lado oposto desse relativismo. Logo na introdução de seu livro Sobre história, Eric Hobsbawn afirma: ‘Defendo vigorosamente a opinião de que aquilo que os historiadores investigam é real.’
O que é dito e o que é silenciado
Em entrevista à revista eletrônica de jornalismo científico Com Ciência, nº 114,10/12/2009, , o historiador José Carlos Reis da um panorama mais abrangente da discussão atual:
‘Penso que se pode distinguir pelo menos três posições em relação ao `relativismo pós-estruturalista´, à crise da verdade, após a euforia cientificista estruturalista. [:]
A primeira é articulada por Hayden White, para quem o relativismo é libertador. Ele não vê oposição entre história e ficção. O historiador produz construções poéticas e se ilude quanto à realidade e verdade de seus relatos. Mesmo que se irritem com o apagamento da fronteira entre o real e o ficcional, os historiadores não podem evitar de pensar no seguinte: a explicação histórica não é dada pelo conteúdo factual. A história adquire sentido da mesma forma que o poeta e o romancista dão sentido ao real. E, para White, isso é bom. A história não é diminuída quando aproximada da literatura, que é também um saber superior. Afinal, só o conhecimento científico é válido? Se o mundo é tal como você o narra, tal como lhe parece, ninguém mais se deixará dominar por discursos dogmáticos e `verdadeiros´, que só são ideologias perigosas. O passado pode ser mudado, a história não precisa ser um fardo insuportável. [;]
Do lado contrário, há a posição de Carlo Ginzburg, o `combatente pela história´ mais radical contra o ponto de vista histórico pós-moderno. Rejeita vigorosamente a `máquina de guerra cética´. Para ele, a metodologia da história, hoje, está distante do trabalho concreto dos historiadores, pois nenhum historiador quer produzir apenas `retórica´. Ginzburg vê graves consequências epistemológicas, éticas e políticas na negação da distinção entre narrativas históricas e imaginárias. O discurso histórico relativista é visto como empático com os `vencedores de 1989´, protegendo o Ocidente da sua culpa e tornando-o irresponsável por sua história de conquistas, genocídios, escravidões, holocaustos e terrorismos. [; e]
Por fim, Paul Ricoeur aponta um outro caminho para a historiografia. Sua abordagem não toma o texto em si mesmo, não aceita a suspensão que faz do mundo, mas o restitui ao diálogo. O texto deixa de ser fechado em si mesmo, porque permite que o leitor se aproprie dele e o transforme, para aplicá-lo ao seu mundo, interpretando a si mesmo, compreendendo-se melhor, pela mediação dos textos.’
Diante das três visões expostas acima, podemos nos questionar: o que historiadores ou jornalistas (uma vez que estes também analisam a realidade), fazem quando se debruçam sobre os fatos? Constroem narrativas que são válidas como ficção, ou essas têm o estatuto de algo real? Todos os avanços da mídia que propiciam a velocidade da informação trazem representações ou versões dos fatos que podem ser interpretadas de forma diferente por quem as recebe ou esse conteúdo é algo mais próximo da realidade? Questões que, por hora, não vamos responder.
No caso dos veículos de comunicação de massa, urge lembrar também que visibilidade demasiada a determinados fatos pode acabar por encobrir a exposição de outros. Outros fatos que talvez hajam interesses que sejam silenciados ou que não cheguem ao alcance de um público mais amplo. Interesses tais que podem estar relacionados direta ou indiretamente a veículos de comunicação. Nesse caso, a discussão sobre o que é realidade ou ficção, ganha um novo incremento: o que é dito e o que é silenciado.
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Professor de História, Ponta Grossa, PR