Uma educação tradicional em Freud, Marx, Adorno, Kant, Nietzsche ou – haja distância – Carlos Alberto Montaner, pró ou contra, como referências de matrizes de pensamento, ainda é suficiente para a compreensão do mundo em que vivemos?
A questão freqüentou nesta semana um verdadeiro bate-boca entre jornalistas que discutiam a crise da mídia. Tudo começou quando este observador chamou a atenção para o trabalho do colunista Merval Pereira no Globo, durante um bate-papo particular na internet. O interlocutor copiou as mensagens para sua rede e em pouco tempo uma dezena de jornalistas entrava na discussão. Queria dizer que Merval havia deixado uma posição de destaque no grupo Globo para cuidar da qualidade de vida, longe das tensões da gestão e da edição, passando a produzir uma coluna diferente: comentários sobre informação, sem arabescos, sem referências teóricas. Como ele mesmo diria, sem frescura.
Foi quando alguém o criticou justamente por essa qualidade que a conversa esquentou. E chegamos ao ponto que dá início a estas reflexões: quando analisamos os fatos ou a imprensa, inevitável carregarmos nossa percepção com as tintas das teses que absorvemos ao longo da existência. Delas extraímos premissas que acabam impregnando tudo que expressamos. O problema começa quando as informações se transformam em mero instrumento para a validação das premissas. Nesse sentido, dizia uma parte do grupo, a coluna de Merval Pereira chama atenção pelo tom direto, pela ausência de metáforas e figuras de linguagem rebuscadas. Para uns, isso representa uma qualidade que andava faltando. Para outros, é sinal de pobreza intelectual.
Linearidade imposta
Alguém colocou a dúvida sobre a validade da educação tradicional num universo hipermediado, no qual os fatos giram com tal velocidade que as realidades percebidas se sobrepõem constantemente e o resíduo de conhecimento pode ser menor do que se tivéssemos menos informações (ou menos premissas).
Assim, o que alguns chamaram de pobreza na linguagem de Merval Pereira seria, na verdade, exatamente o contrário, pelo resultado em termos de esclarecimento que sua coluna seria capaz de produzir, vis-à-vis os concorrentes que carregam na ironia ou no mau-humor. Alguém comparou Merval a Clóvis Rossi. Outro o comparou a Dora Kramer, e o pano de fundo era sempre mais emocional que racional, a tal ponto que um dos participantes, petista de dízimo, acabou afirmando que considera Rossi mais direitista que Delfim Netto. (Aproveitou a recente declaração pública de afeto do colunista em relação ao deputado.)
Foi preciso, então, convocar alguém especialmente habilitado, e o observador solicitou a presença da professora Beth Saad, doutora em Comunicação e, segundo ela própria, ‘hipermediada até alma’. Compareceu e disse: Merval é didático e quase cronológico, o mundo hipermediado…
‘…é um mundo essencialmente de correlações e o papel do mediador destas informações para o público, além da objetividade, é apontar por onde correlacionar (veja, apenas apontar!). Bem, pela via do pensamento tradicional, onde a escola alemã (e os fraknfurtianos em especial) predomina, a informação acaba sendo fruto de uma opinião unilateral e de uma suposta vertente de verdade (do autor), não havendo espaços para comparações, oposições, etc. O mundo é unilateral, retilíneo! Nesse sentido, posições opinativas fechadas (Clóvis Rossi é citado) vinculam conteúdo diretamente à autoria (e respectivas ideologias..)’.
Disse mais: que sob esse ponto de vista, a coluna do Merval, apesar de objetivíssima (podendo até enganar que é frankfurtiana) é um prato cheio para o desdobramento de correlações. Assim, em resumo pobre e arriscado, pode-se dizer que o recurso à modéstia do colunista seria, na verdade fonte de maior riqueza para o leitor.
Por aí fomos, e outros participantes se queixaram de certo desconforto com a linearidade excessiva da maioria dos colunistas bem-sucedidos e da forte tendência à valorização de jornalistas que substituem o papel de mediador entre correntes e se transforma no que Beth Saad qualifica como ‘uma espécie de líder agregador de parte da opinião pública em torno de si e do seu veículo’.
Tarcísio Cardieri, um educador de executivos que este observador tem em alta conta, havia comentado em mensagem anterior que desconfia da efetividade de certo discurso especializado ou excessivamente acadêmico, dirigido quase exclusivamente para ‘iniciados’, o que, no sentido ideológico, corresponde a dizer que os jornalistas frankfurtianos falam para correligionários. ‘E aqui podem ser incluídos os jornalistas especializados em qualquer campo, mas com grande destaque para os que escrevem sobre artes’, diz Cardieri. E sua mensagem se soma a certo mal-estar com a linearidade que a imprensa parece querer impor, num cenário de múltiplas alternativas, de grandes mudanças, de múltiplas mídias e excesso de informações.
Mudanças radicais
No meio das discussões, começou a rolar o noticiário online sobre as acusações que levaram à demissão do subchefe de Assuntos Parlamentares da Presidência da República, Waldomiro Diniz, e os fatos acabaram demonstrando que as premissas definem o tom do noticiário com mais força que a informações em si.
O Estado de S.Paulo foi cuidadoso, dosando a seqüência das matérias com declarações de um lado e de outro, revelações e citações, sem envolver explicitamente a cúpula do PT. A Folha de S.Paulo vinculou ao caso Waldomiro à briga entre petistas e pedetistas em frente ao Hotel Glória, onde o PT comemoraria seus 24 anos. O Estado ligou o protesto de pedetistas a investimentos federais no Rio e registrou que a polícia de Anthony Garotinho preferia bater em petistas. O Globo pegou leve, o Jornal do Brasil deu espaço para nota da governadora Rosinha Matheus, enquanto o anúncio do Bingonet brilhava e saltava na tela. A Folha Online também oferecia um anúncio de loteria online, porém muito mais discreto.
No debate entre jornalistas, alguém se lembrou de questionar se José Dirceu havia se manifestado. Outro perguntou se não seria o caso de o ministro colocar o cargo à disposição, para evitar maiores constrangimentos ao presidente da República. Um terceiro citou o caso do economista Eduardo Jorge Caldas Pereira, secretário-geral da Presidência no governo anterior, que foi massacrado na mídia em 2000 e 2001, com munição fornecida pelo procurador Luiz Francisco de Souza e recarregada por fontes do PT. E alguns notaram que a grande imprensa nacional estava agindo de maneira diferente, no caso Waldomiro: com exceção da Folha, que no domingo (15/2) exibiu uma cronologia de seus vínculos com José Dirceu, desde 1992, a tendência foi de isolar o suspeito, ao contrário do caso Eduardo Jorge, que a todo tempo respingava no Planalto.
O chamado mundo real rapidamente diluiu os propósitos iniciais do debate, mas alguém ainda endereçou uma questão: se a imprensa está apostando num discurso linear e extremamente opinativo e o público está precisando de correlações, mais do que de afirmações conclusivas, não haveria aí certa dose de esquizofrenia e de alienação por parte da mídia?
A equação não fecha. Sem uma boa solução para ela, fica difícil até mesmo desenhar um modelo de negócio para a imprensa neste momento de mudanças radicais. Tomada por autores e com um número cada vez menos expressivo de mediadores, até que ponto ela ainda representa o interesse público?
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Jornalista