Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A mídia tem ‘memória’ curta

A tragédia com o Boeing da Gol, que matou 154 pessoas no final de setembro de 2006, está nas manchetes outra vez. O assunto volta a ser notícia e a mídia nos oferece mais um bom exemplo de como a arte da edição pode contribuir, decisivamente, para desinformar a sociedade.

O jornal Folha de S.Paulo (18/2/2007) traz na manchete de primeira página: ‘Fitas revelam erros na queda do avião’. Três páginas do caderno ‘Cotidiano’ são dedicadas à pauta, suscitada pelo acesso do diário paulista às transcrições das conversas entre os pilotos do jato Legacy, Joe Lepore e Jan Paladino, e controladores de tráfego aéreo brasileiros.

Transponder oculto

A reportagem de Eliane Cantanhêde joga com a tese de que ‘uma sucessão de erros e mal-entendidos’ explicaria o desastre. Para os controladores de Brasília o adjetivo é ‘displicente’; quanto à falta de conhecimento dos pilotos norte-americanos acerca dos procedimentos de rotina do jato a palavra é ‘desconforto’.

Os dados da caixa-preta desnudam erros fatais. Um: o transponder/localizador (TCAS) estava desligado, e foi percebido três minutos após a colisão. Outro: os pilotos assumem não saber operar o sistema que gerencia os dados do vôo, como altitude e rota, o chamado FMS (flight management system). Por fim, uma verdade inconteste: os pilotos norte-americanos tinham decidido seguir uma rota à revelia do plano de vôo, que os mandava voar a 36 mil pés após Brasília, e não nos 37 mil, espaço exclusivo do Boeing, que voava de Manaus para Brasília.

Uma informação aparece ‘jogada’ entre dezenas de parágrafos, fotos e infográficos: ‘Conforme a Folha apurou, os investigadores aeronáuticos trabalham com a hipótese de um dos dois, Lepore ou Paladino, estar com um laptop aberto no colo, com a tampa escondendo a parte do painel onde se encaixa o transponder’.

Despreparo dos pilotos

O Fantástico (TV Globo) do mesmo dia repercutiu o fato novo. Os trechos da conversa selecionados responsabilizam tão-somente os controladores de vôo brasileiros e autoridades do setor. A reportagem diz que os pilotos norte-americanos tiveram ‘dificuldades com equipamentos’. O texto aponta, no máximo, alguma ‘confusão’ na cabine de comando do jatinho. A repórter Délis Ortiz ignora a confissão dos pilotos quanto ao desligamento do transponder, bem como o fato de não estarem habilitados para operar aquele tipo de equipamento. Sua conclusão é natural: foi ‘ouvir’ a Aeronáutica, ao invés de Paladino e Lepore.

Fazendo um contraponto, o Estado de S.Paulo também repercutiu o caso com outra angulação: foi ouvir profissionais da aviação a respeito do caso. O título da matéria publicada pelo jornal é contundente: ‘Caixa-preta mostra despreparo dos pilotos do Legacy’. A interpretação dessas fontes caminha em outra direção: ‘A transcrição da caixa-preta do Legacy foi publicada ontem pelo jornal Folha de S.Paulo. Com base nela, pilotos acreditam que Lepore e Paladino não plotaram – digitaram – corretamente o plano de vôo no Flight Management System (FMS), equipamento que gerencia todos os dados do trajeto. ‘Não souberam nem configurar o plano de vôo’, disse um comandante de aviões comerciais’.

Acúmulo de erros

O que mais chama a atenção nesse tipo de caso é a extrema dificuldade da mídia admitir seus erros, saliências e omissões, enfim, mostrar algum grau de ‘memória’. Lembro que aqui mesmo, neste OI, eminentes observadores louvaram a entrevista com Lepore e Paladino que a Folha publicou em 17/12/2006 e que, em linhas gerais, ‘isentava’ ambos de quaisquer erros no episódio. Na opinião do jornalista Paulo Henrique Amorim, ‘a imprensa brasileira e americana desempenhou até aqui um papel importante: dirigir a responsabilidade aos brasileiros incompetentes e relevar a falha dos eficientes americanos’.

Em suma, o relatório da conversa no comando do Legacy indica, com relativa clareza que: (1) o transponder, que evitaria o choque, estava desligado; (2) os dois pilotos não sabiam operar o sistema de gerenciamento de dados do jatinho; (3) Jan Paladino e Joe Lepore descumpriram o plano de vôo.

Erros fatais, que custaram 154 vidas.

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Jornalista, doutor em mídia e teoria do conhecimento pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e coordenador do Curso de Jornalismo do Bom Jesus/IELUSC