Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A mídia venezuelana sob Hugo Chávez

No último minuto do domingo, 27 de maio, o governo da Venezuela, por vontade expressa do presidente Hugo Chávez, interrompeu em definitivo o sinal da RCTV – a maior, mais antiga e popular emissora venezuelana de televisão. A decisão de Chávez de não renovar a concessão da RCTV criou muita polêmica e repercutiu no mundo inteiro. Alguns o acusam agir como um ditador ao fechar as portas de uma emissora de oposição, com participação comprovada na tentativa de golpe contra seu governo, em 2002. Outros, dizem que a decisão foi legítima. O Observatório da Imprensa na TV, exibido na terça-feira (5/6), debateu a atual relação entre a mídia venezuelana e o governo de Chávez.


No editorial que abre o programa, Alberto Dines referiu-se aos interesses políticos que envolvem o fim da RCTV [ver íntegra abaixo]. Participaram do debate, em Brasília, o senador Arthur Virgílio (PSDB-AM); em São Paulo, os jornalistas Renato Rovai e Roberto Lameirinhas, subeditor de Internacional do Estado de S.Paulo; e no estúdio do Rio, o professor de relações internacionais Williams Gonçalves, do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF).


O fim da RCTV não foi foi uma surpresa: desde os meses seguintes à tentativa de golpe de 2002, o presidente Chávez já havia anunciado que não iria renovar a concessão da emissora. Desde então, a RCTV – no ar havia 53 anos, com audiência garantida por uma programação de cunho popular – vinha sofrendo represálias por parte do governo.


Logo após o encerramento de suas transmissões, muitos venezuelanos foram às ruas pedir a volta da emissora. Para desviar a atenção do público, a reação de Chávez foi organizar shows populares para comemorar o início do novo canal estatal, a Teves, que passou a ocupar o lugar da RCTV no espectro radioelétrico. Pesquisas indicaram que grande parte da população venezuelana rejeitou a medida de força – e o fechamento da RCTV suscitou reações de reprovação na América Latina, Europa e Estados Unidos.


O fim da RCTV gerou temor nas outras emissoras do país, que se descobriram passíveis de também sofrer retaliações caso não estejam de acordo com as orientações do governo. Exemplo disso foi o fato de as emissoras privadas venezuelanas não terem feito ampla cobertura jornalística das manifestações contra Chávez. Não que elas tenha sido proibidas de fazê-lo ou mesmo censuradas, mas é fato que optaram por praticar uma política de boa vizinhança com o presidente para continuarem operando sem problemas.


Acordo de bastidor


Alguns especialistas sustentam que a não-renovação da concessão da RCTV está rigorosamente dentro da lei. ‘A radiodifusão, como alguns outros serviços, são serviços públicos concedidos – tanto no Brasil quanto na Venezuela – com prazos determinados e sob determinadas condições’, explicou em entrevista gravada o jornalista e sociólogo Venício A. de Lima, colunista do Observatório online e pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília. Para ele, tanto a renovação quanto a não-renovação são atos legítimos dos governos.


Instado por jornalistas a comentar o fim da RCTV, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não se pronunciou. Mas o senador José Sarney (PMDB-AP), um dos mais fortes aliados do governo no Senado, criticou duramente a atitude de Chávez e encaminhou uma moção de repúdio ao fechamento da RCTV. A resposta do presidente venezuelano veio no mesmo tom, ao afirmar que o Senado brasileiro agia como ‘um papagaio do Congresso norte-americano’. Depois desse esboço de crise diplomática, o presidente Lula comentou que só chegou à presidência da República graças às críticas e elogios da mídia brasileira. E afirmou que, apesar de todas as dificuldades, o Brasil vive numa democracia e isso é o mais importante.


Além dos debatedores no Brasil, o Observatório conversou com o jornalista e professor da Universidade Central da Venezuela Boris Muñoz, direto de Caracas, por telefone. Alberto Dines abriu a discussão pedindo a Muñoz que traçasse um cenário para o futuro, e perguntou se havia esperanças de uma democracia na Venezuela, sobretudo no tocante à liberdade de expressão. O jornalista venezuelano informou que em breve haverá um encontro entre representantes dos estudantes que foram às ruas protestar contra o fechamento da emissora, integrantes do governo e da Assembléia Nacional, o parlamento venezuelano. A reunião não tem relação direta com o fim da RCTV, mas o tema deve ser abordado, disse. Segundo o jornalista, isso não significa que Hugo Chávez voltará atrás, mas que o governo ouvirá a oposição e isso é um sinal de democracia no país.


Dines pediu a Muñoz que comentasse as críticas feitas a Chávez, segundo as quais o presidente teria tirado a RCTV do ar em retaliação ao apoio da emissora à tentativa de golpe em 2002. O apresentador comentou a contradição existente no fato de Gustavo Cisneros, dono da Venevisión, que também esteve envolvido com o golpe, manter sua emissora Venevisión em operação e ser hoje um interlocutor privilegiado do presidente.


Muñoz confirmou ter havido um acordo entre Chávez e Cisneros. Segundo ele, o presidente não mexeria com a Venevisión, mas Cisneros deveria assumir uma linha editorial que abrisse espaço para debater aspectos positivos do governo de Chávez.


Protagonistas do golpe


Dines comentou ter havido grande dificuldade da produção do programa em encontrar senadores da base aliada para participar da discussão. Para ele, isso não deveria acontecer porque numa democracia este é um assunto de interesse de todos. E perguntou ao senador Arthur Virgílio por que o problema da RCTV transformou-se numa questão política para o Senado brasileiro.


O senador amazonense disse que o papel desempenhado no episódio pelo senador Sarney demonstrou que o assunto é suprapartidário. Disse que, para os senadores, o que aconteceu na Venezuela foi muito grave e que Chávez é exemplo do tradicional ditador latino-americano. ‘Esmaga as oposições, esmaga a manifestação da imprensa, aos poucos vai implantando uma ditadura, e se implantar a ditadura entra em conflito armado com algum vizinho seu’, disse. Afirmou que nesse momento a atitude do Brasil deve ser defender a democracia pela qual ‘Lula tanto lutou’.


Dines comentou que o ocorrido na Venezuela não foi um processo de radicalização contra os meios de comunicação, mas um processo de radicalização interna no qual será difícil haver um retrocesso. E perguntou ao professor Williams Gonçalves como analisava a questão.


Gonçalves afirmou avaliar a situação de maneira diferente da do senador Virgílio. Disse que a TV deixou de ser um meio de comunicação e se tornou um ator político – e que, a partir desse momento, tornou-se um alvo político, do mesmo modo como ocorre com os demais atores políticos.


Dines indagou a Roberto Lameirinhas se, de acordo com as informações prestadas por Boris Muñoz sobre a reunião dos manifestantes com o governo, haveria alguma chance de reversão do quadro de radicalização. ‘Embora seja um fato político não-midiático, isso pode ter alguma repercussão no processo de comunicação da Venezuela’, disse Dines.


O jornalista do Estadão comentou que o fato de o governo abrir o debate entre intregrantes da Assembléia Nacional Venezuelana – composta por parlamentares que apóiam o governo – e os líderes da oposição e do movimento estudantil – que estão nas ruas pedindo a liberdade de expressão – já é algo bom. Mas disse que não via uma possibilidade de Chávez recuar e devolver a concessão à RCTV. ‘Acho que ele conhece bem as conseqüências da decisão que tomou. Ele não é nenhum imbecil político’, opinou.


O apresentador perguntou a Renato Rovai se o fim da RCTV vai melhorar o processo democrático da Venezuela. O jornalista – autor do recém-lançado Midiático poder: o caso da Venezuela e a guerrilha informativa – disse que a situação da RCTV deve ser analisada em seu contexto histórico. O país passou recentemente por duas tentativas de golpe, ‘uma delas midiático-militar e outra midiático-econômica’, sublinhou. ‘Os protagonistas do golpe foram os meios de comunicação.’ Nesse quadro, ‘o fim da emissora não significa um avanço do ponto de vista da liberdade democrática ou de imprensa, mas também não é um absurdo ou um marco ditatorial e fascista do presidente Chávez’, disse Rovai.


Pressão da mídia


Nesse ponto, o vice-presidente de informação da RCTV, Alberto Sapene, entrou no debate por telefone, desde Caracas. Dines pediu que ele falasse sobre a participação da RCTV na tentativa de golpe militar contra o governo. ‘Qual o fundamento das acusações?’, perguntou. Sapene disse que o presidente Chávez agiu contra uma emissora responsável e independente, e que ele acabou não apenas com o direito de transmissão, mas com o direito de povo de assisti-los. E que isso era contra a liberdade de expressão.


Dines afirmou querer despartidarizar, no Brasil, as avaliações sobre o processo venezuelano, já que na Venezuela isso é difícil. ‘Que pelo menos junto ao Legislativo tenhamos uma visão mais clara e menos eleitoreira do país vizinho’, disse. E se dirigiu ao senador para saber sua opinião.


Arthur Virgílio disse que política externa não rende votos no Brasil. Afirmou que Chávez ganhou as eleições sem a participação da oposição, com milícias armadas nas ruas e num clima de terrorismo político. Disse ainda que o fato de os estudantes se reunirem com a Assembléia Nacional na Venezuela pode até ser algo bom: ‘É positivo no meio daquela escuridão toda, mas no Brasil, que é uma democracia consolidada, não é nada elogiável os parlamentares se reunirem com estudantes’. O senador afirmou que um regime autoritário por perto incomoda, ‘por isso meu partido resolveu obstruir a aprovação – e temos força para isso, acredito – do protocolo de adesão da Venezuela ao Mercosul, por entender que é necessário uma retratação do presidente Chávez em relação ao Senado brasileiro’. E prosseguiu: ‘É bom que ele saiba que há vozes que contrastarão com a dele. Democracia é coisa nossa.’ Completou dizendo que o presidente Chávez não aceitava o nível de críticas que a RCTV fazia ao seu governo.


Dines perguntou ao professor Williams Gonçalves se o debate sobre a Venezuela pode se projetar no processo político brasileiro. ‘Fiquei extremamente preocupado quando vi a sucessão de senadores da base aliada que foram convidados e inventaram desculpas para não participar do programa. Você acha que teremos a `chavização´ da política brasileira com relação a mídia?’, indagou o apresentador.


Gonçalves disse não acreditar nisso. ‘No Brasil, alcançamos um padrão de comportamento dos meios de comunicação bastante razoável. O que a RCTV fez na Venezuela nenhuma emissora TV ou de rádio faria hoje no Brasil.’ Para o professor, são sociedades diferentes e devem ser tratadas de maneiras diferentes, embora, para os senadores, o assunto seja mais delicado porque a parceria com a Venezuela é favorável ao Brasil.


Dines referiu-se ao livro de Renato Rovai com um trabalho muito interessante por avaliar a mídia venezuelana durante o período dos golpes até hoje, quando a mídia é cúmplice de Hugo Chávez. Comentou que nem sempre a mídia é punitiva, e deu como exemplo a tomada do poder pelos militares no Brasil, que ocorreu com o apoio de ‘99,9% da mídia brasileira’. Entretanto, lembrou: ‘Mas a redemocratização também aconteceu graças à pressão da mídia’. E brincou, perguntando a Rovai, o que a sua bola de cristal era capaz de prever sobre a mídia venezuelana.


Conflitos acirrados


Rovai respondeu que a bola de cristal está bastante embaçada, mas que queria dizer algo importante: o viés escolhido por Hugo Chávez para não renovar a concessão da RCTV foi contra o avanço da democratização dos meios de comunicação. ‘Perdeu-se essa oportunidade’, lembrou. E contou que para que isso acontecesse deveria haver um grande debate na sociedade, e que a concessão cassada fosse disputada por outros grupos.


‘Lameirinhas, e sua bola de cristal?’, provocou Dines. ‘Acho que minha bola de cristal está tão embaçada quanto a do Renato’, esquivou-se o subeditor do Estadão. O jornalista disse que neste momento existe radicalização tanto por parte da oposição quanto do governo venezuelano. Segundo Lameirinhas, a legitimidade não se discute, mas há um abarcamento dos meios de comunicação pelo Estado. ‘Não existe ninguém que fale pela oposição’, criticou. E afirmou que o ideal seria um entendimento entre chavistas e oposição para definir o que pode e não pode ser feito na política de comunicação. Apontou ainda que a eleição de dezembro passado foi conquistada honestamente pelo presidente: ‘Ele estava muito fortalecido politicamente’.


Dines reivindicou a existência no Brasil um órgão com a dimensão de um Conselho de Comunicação Social – que aliás está previsto na Constituição, mas que, embora formalmente instalado, está inoperante há muito tempo. E pediu ao senador Arthur Virgílio que lutasse por isso quando voltasse às suas atividades no Senado. O senador disse que podia contar com ele.


Nos comentários finais do programa, Arthur Virgílio disse que Chávez é um perigo para Venezuela, era sua ruína e que a produção de petróleo diminuiu depois dele. ‘Ditadura, para mim, nem quando eu próprio seja o ditador’, afirmou.


Renato Rovai disse que o debate da política na mídia não se dá só na Venezuela, mas também no Brasil: ‘A politização da política dos veículos de comunicação levou, no ano passado, a um descrédito muito grande de certos veículos’. E discordou da opinião de Virgílio de que Chávez é um ditador. Roberto Lameirinhas contou que a sociedade venezuelana é bastante dividida socialmente – não por culpa de Chávez –, e por isso os conflitos de classe se acirram – por culpa de Chávez. Disse que a RCTV e a Cablevisión eram praticamente os únicos meios nos quais as diferentes classes sociais conviviam. E diagnosticou: ‘Esse ambiente parece abalado. Gostaria de fazer um estudo para descobrir as conseqüências disso’.


Williams Gonçalves, por sua vez, disse que queria usar o tempo de que dispunha para agradecer o convite ao Observatório e afirmar que é preciso conhecer melhor nossos vizinhos.


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RCTV, Venevisión e o golpista aliado


Alberto Dines # editorial do programa Observatório da Imprensa na TV nº 419, exibido em 5/6/2007


Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.


O Senado não é um clube, nem partido, o Senado é a voz da República Federativa cujo nome é Brasil. Esse é o princípio da democracia representativa. Os senadores têm autonomia e legitimidade para se manifestar a respeito de países, blocos, ameaças e problemas. Está no seu direito pronunciar-se sobre o que se passa na Venezuela justamente porque o país vizinho foi escolhido como parceiro privilegiado.


O presidente venezuelano Hugo Chávez também tem o direito de expressar suas opiniões sobre quem quer que seja. Inclusive sobre o Senado brasileiro. Mas terá assumir o ônus político.


Isso posto, o que interessa a este Observatório da Imprensa não são os desdobramentos diplomáticos da crise resultante do fim da concessão da RCTV, a maior e mais antiga televisão venezuelana. O que nos interessa é justamente esta não-renovação porque o sistema de radiodifusão vigente na Venezuela é semelhante ao brasileiro.


Estamos preocupados, e não é de hoje, porque o conceito de ‘mídia golpista’ transcendeu à Venezuela e a Chávez e está se transformando num chavão partidário extremamente perigoso para a nossa democracia.


É verdade que a RCTV embarcou no golpe que tentou derrubar Hugo Chávez em 2002, mas também é verdade que a Venevisión, de Gustavo Cisneros, foi igualmente golpista e hoje desfruta de todos os privilégios do governo de Chávez. Significa que há golpistas que interessam a Hugo Chávez e golpistas que precisam ser calados.


O povo que vai às ruas de Caracas em defesa da RCTV talvez não esteja muito preocupado com vagas noções de liberdade de expressão. Mas é preciso lembrar que o Estado é o poder concedente em nome da sociedade – e a sociedade venezuelana está mostrando que deseja a RCTV de volta.

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Jornalista