Parte do apelo da política italiana sobre os espectadores é sua semelhança com um jogo de xadrez multidimensional. Os jogadores movimentam-se de maneira complexa, sinuosa, aparentemente recuando para, em seguida, desfechar seu golpe. Em seu best-seller de 2007, La Casta, os jornalistas Sergio Rizzo e Gian Antonio Stella definiram a casta política como um grupo de elite que muito ocasionalmente leva em consideração os que o elegeram e pagam seu salário, seus carros blindados, os gabinetes luxuosos e as aulas de tênis.
Mas, agora, o crescente descontentamento das bases começa a mexer as peças do tabuleiro.
Em novembro, depois das acusações sobre a vida privada e os abusos de poder do primeiro-ministro Silvio Berlusconi – que ontem (23/12) admitiu pela primeira vez que pode convocar eleições antecipadas –, Gianfranco Fini, líder do partido pós-fascista Aliança Nacional e ex-parceiro da coalizão do Partido Povo da Liberdade, pediu a demissão do premiê.
Fini, que não dispõe do dinheiro nem dos meios do seu outrora parceiro, revelou-se o grande mestre ao sobreviver a um escândalo imobiliário de pequenas proporções (pelos padrões italianos) alimentado pelos veículos de comunicação de Berlusconi, e articular a perda do apoio da base do mais conhecido chefão da mídia e da política do século 21. Com esta virada, três mitos – sustentados pelo histrionismo e pelo descaramento de Berlusconi e, a bem da verdade, com algum sucesso inicial – perderam sua força.
Eleitorado despertou de longo sono
O primeiro é que Berlusconi sabe resolver os problemas – a crise do lixo em Nápoles, onde montanhas de dejetos foram se acumulando; a falência da Alitalia; e os efeitos do terremoto na cidade de L´Áquila. Suas declarações a este respeito estão sendo consideradas cada vez mais desgastadas. O lixo na antiga capital do sul do país e seus arredores continua aumentando. O diretor executivo da Alitalia teria afirmado que a companhia aérea precisava se fundir com a Air France – conclusão à qual chegara o governo anterior, ao qual Berlusconi se opôs, ajudando-o a ganhar a reeleição em 2008. E os cidadãos de L´Áquila queixam-se de que a tão propagandeada reconstrução está parada.
O segundo mito diz respeito aos bilhões de Berlusconi, motivo pelo qual ele não precisaria da corrupção, e ao fato de que pode tornar os italianos mais ricos porque sabe criar riqueza. Na realidade, a corrupção na Itália, segundo todos os índices internacionais, é grave, talvez esteja pior do que nunca e a economia está estagnada. Consideráveis cortes estão sendo feitos no setor de serviços e na educação, enquanto o êxodo dos jovens e talentosos continua.
Os sucessos – a recuperação financeira da Fiat e o constante vigor da Itália nos setores têxtil, da moda e da alimentação – não são conquistas de Berlusconi. Na realidade, a maior acusação que lhe é feita é a de que, preocupado em se proteger, ele pouco fez para liberalizar a economia.
O terceiro mito é o de que ele criou uma coalizão viável de centro-direita e deu à Itália um governo estável de dois blocos. A saída de Fini torpedeou este projeto: Berlusconi agora depende da Liga Norte, cujo programa ultrafederalista poderá provocar uma crise entre o sul, economicamente fraco, e a rica região norte do país. Além disso, uma estabilidade a que preço, se o Parlamento não aprova nenhuma lei para sanar a esclerose da nação? Nada disso é decisivo. A riqueza e o império das comunicações de Berlusconi poderão fazer com que ele sobreviva; o principal partido da esquerda, o Partido Democrático, é fraco, e o premiê tem muitos aliados, no âmbito nacional e local. Mas, ao que tudo indica, o jogo parece estar perto do fim: agora se joga abertamente e as jogadas são realizadas sob os olhos de um eleitorado que finalmente despertou de um longo sono.
Versões do modelo
O despertar do público significa que o legado político de Berlusconi é incerto, mas o de seu império das comunicações será duradouro. A Itália foi a pioneira de alguns dos movimentos políticos mais influentes do século 20, até mesmo o fascismo, o eurofederalismo e o eurocomunismo.
Sob Berlusconi, ela criou mais um: a midiacracia.
A midiacracia, ou governo pela mídia, funciona tanto nos países democráticos quanto nos autoritários. A versão de Berlusconi é um modelo extremo e tem como base o laxismo legal e cultural da Itália em matéria de conflitos de interesses. Seu produto é um político dominante, dono dos três principais canais de televisão, da principal editora, de empresas de publicidade e de um império em jornais e revistas; e, no poder, ele controla a televisão estatal e a emissora estatal RAI.
Versões deste modelo começam a brotar em toda parte. O amigo de Berlusconi, o francês Nicolas Sarkozy, elaborou uma estratégia apelidada de Sarkoberlusconismo pelo sociólogo francês Pierre Musso. Por meio das estreitas alianças do presidente francês com os proprietários do principal canal de televisão do país e com os donos de jornais e revistas, Sarkozy pretende imitar o controle de Berlusconi sobre a linguagem da comunicação nacional. Na Tailândia, Thaksin Shinawatra, primeiro-ministro de 2001 a 2006, dirigiu um regime populista com a ajuda de seu império da mídia – no entanto, ele foi o autor de importantes realizações para a redução da pobreza para contrapor às acusações de corrupção.
Políticos e magnatas da imprensa
Ao mesmo tempo, outro grande amigo de Berlusconi, o primeiro-ministro russo Vladimir Putin, se deu conta, como ele, de que o controle da televisão é fundamental – e não é preciso se preocupar com os jornais. Na África do Sul, também, o governo cada vez mais autoritário controlado pelo Congresso Nacional Africano garantiu que a emissora estatal, SABC, refletisse seu programa. Os ataques do CNA aos bravos jornais independentes do país avolumam-se e, graças a Atul Gupta, um magnata partidário do presidente Jacob Zuma, surgiu um jornal pro-CNA, o New Age (Nova Era)- atualmente dilacerado pelas disputas internas que adiaram seu lançamento).
Evidentemente, os ricos expoentes da mídia apolítica também tentam estender sua influência na política: Rupert Murdoch é o grande mestre no caso. Eles são a outra lâmina da tesoura que se fecha sobre os esforços de preservação da ideia e da prática do jornalismo independente. O estudioso italiano, Paolo Mancini, afirma que o período dominado pela ideologia do ‘jornalismo objetivo’ da mídia está chegando ao fim. Os veículos de comunicação estão voltando às suas raízes do século 19 como atores influentes no campo da política – impulsionados pelos políticos, pelos magnatas da imprensa e, no caso da Itália, pelo homem que é ambas as coisas ao mesmo tempo. Nesse aspecto, Berlusconi é indubitavelmente o grande mestre (Tradução de Anna Capovilla).
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Respectivamente, acadêmico da Universidade Oxford e escritor, ambos integrantes do Prospect Magazine