Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A missão da imprensa

O que falta ao Partido dos Trabalhadores, as Organizações Globo têm de sobra: competência e profissionalismo, além de uma imensa vontade dos jornalistas de desempenharem seu papel na sociedade, evidentemente no âmbito de uma estrutura empresarial altamente integrada, submetida a uma direção centralizada. Há anos as Organizações Globo vêm integrando os seus veículos de comunicação, investindo em tecnologias de ponta e treinando seu pessoal para se tornar um modelo de empresa competitiva. As empresas de comunicação O Globo, Rede Globo e Rádio CBN adotam uma direção jornalística originada no Conselho Editorial, do qual participam os proprietários, diretores e jornalistas. Guardadas as devidas diferenças, em função da natureza dos meios, os temas e o tom das reportagens divulgadas à noite no Jornal Nacional estão no dia seguinte contidos no formato e no conteúdo editorial de O Globo.

Atualmente, é possível observar nos textos do jornal O Globo duas linhas de interpretação em disputa pelo público leitor. A primeira pode ser representada pela coluna de Tereza Cruvinel. No caso do dossiê contra os tucanos, a jornalista coloca o PT no centro dos acontecimentos e avalia seus possíveis efeitos eleitorais para a campanha do presidente Lula. Diz ela que “a burrice e a estupidez dos supostos operadores petistas suplantaram a falta de escrúpulos ao pôr em risco a candidatura do presidente Lula” (19/9/2006). Sua análise caminha no sentido de criticar a partidarização da máquina administrativa e responsabilizar uma ala do PT pela crise ética experimentada pelo partido, ala que tem “em comum a origem sindicalista, a conduta voluntarista e transgressora, a filiação ao campo majoritário e ao PT-SP” (23/9/2006).

Além de oferecer valiosos subsídios para o debate público acerca das relações entre governo e partido num contexto democrático, a jornalista adota uma postura responsável quanto ao envolvimento do presidente no caso: “Apesar das afirmações peremptórias da oposição, não há provas de que o presidente, num surto de demência política, tenha autorizado a operação” (20/9/2006).

Discurso ambíguo

A segunda linha de abordagem pode ser representada pela coluna de Merval Pereira. No caso do dossiê contra os tucanos, o jornalista coloca o presidente no centro dos acontecimentos e aposta na existência de um segundo turno para as eleições presidenciais: “Supondo que Lula não tenha sido informado da operação, mesmo com tanta gente ligada diretamente a ele envolvida, é o responsável pelo clima de leniência que envolve, desde o primeiro momento, os autores dos crimes, eleitorais e comuns, que vêm sendo cometidos nas cercanias do Palácio do planalto” (20/9/2006).

Ao julgar e condenar Lula, o colunista acaba ele próprio aplicando a pena, pois constrói a imagem de um presidente associado a bandidos e criminosos, numa clara tentativa de desmoralizar a autoridade central da República, que foi legitimamente eleito e é candidato à reeleição com elevado índice de aceitação popular. No caso do dossiê, a interpretação de Merval parece ser a predominante nos textos de O Globo, porque seus pontos de vista coincidem não só com os editoriais que têm sido publicados como também têm sido manifestados nas reportagens, em tom mais policial do que político, sugerindo que o governo Lula representa uma regressão histórica.

Em diversos momentos de sua história, O Globo adotou um discurso ambíguo, ao articular valores liberais e antiliberais. As raízes desse discurso podem ser encontradas no jornal A Noite, criado em 1911 e reconhecido como precursor de O Globo, que prestaria seu apoio à Aliança Liberal na Revolução de 30. No tempo em que Irineu Marinho, pai de Roberto Marinho, era proprietário do jornal, é possível observar uma estreita correspondência entre o programa do candidato civilista Rui Barbosa, derrotado nas eleições presidenciais de 1910, e a linha editorial do jornal, de oposição ao governo do Marechal Hermes da Fonseca.

O espírito público

Embora Rui Barbosa encontrasse espaço no jornal para divulgar os princípios liberais, A Noite tinha como seu articulista Alberto Torres, que pregava a revisão constitucional do país: “Procurando tornar a leitura de A Noite cada vez mais atraente, acabamos de contratar o eminente publicista brasileiro Sr. Dr. Alberto Torres, que escreverá um artigo por semana às segundas-feiras. O primeiro desses artigos será publicado amanhã”. “O Dr. Alberto Torres, que é incontestavelmente um dos nossos mais profundos pensadores e dos que mais interesse tem revelado pelas grandes questões nacionais, acaba de dedicar a esse assunto da revisão constitucional um volume de 382 páginas, que constitui a primeira parte da sua nova obra A organização nacional”. De fato, Alberto Torres acabaria sendo reconhecido como um dos mais importantes representantes do pensamento autoritário no Brasil, ao defender a necessidade de um Estado tutelar para transformar o país em nação forte.

É preciso considerar que as questões que envolvem as relações entre imprensa e poder ganharam particularidades no Brasil. Embora os partidos e as eleições formalmente fizessem parte da organização do moderno Estado nacional que se ergueu com a República, sempre foram vistos pela tradição liberal mais como instrumentos para se alcançar o poder do que como meios para aferir e organizar a vontade nacional. Caberia a um governo de elites confiáveis e competentes o papel de expressar os interesses do povo.

Desde a fundação da República brasileira, o liberalismo viu no regime representativo com participação restrita o modelo adequado de organização política, dadas as peculiaridades de uma formação social em que as massas eram consideradas carentes de educação e qualificação cultural. A concepção que atribuiu à elite o papel de intérprete dos interesses da nação também colocou a imprensa em primeiro plano, enfatizando sua posição central como órgão da opinião pública. Segundo Rui Barbosa, a imprensa é a vista da nação. É a garantia de todas as garantias. Pela imprensa se alcança a verdade, revelada pelo mais elevado espírito público comprometido com o combate à corrupção e ao arbítrio que degeneram as instituições republicanas.

Contribuição ao debate

No âmbito do pensamento liberal e apoiado na crença de que a imprensa tem uma missão, Roberto Marinho, em pronunciamento pela Rede da Democracia durante o governo Goulart, pediu que se atendesse “quanto antes, ao dramático apelo da Sociedade Interamericana de Imprensa que, através de sua Comissão de Liberdade de Imprensa, em sua última reunião, exortou os jornalistas do continente a que detenham, sem mais demora, o avanço comunista na América”.

Dessa forma, O Globo articulou naquele momento de crise das instituições representativas os discursos liberal e autoritário. O jornal adotou um discurso ambíguo e assim agiu para evocar dois tipos de legitimidade, de modo a responder aos desafios colocados à dominação burguesa sobre o Estado. O jornal não deixou de defender a preservação das instituições representativas liberais, mas, ao evocar a legitimidade da luta contra o comunismo e a necessidade de ordem interna como condição para a retomada do desenvolvimento econômico, aproximou-se das idéias contidas na Doutrina de Segurança Nacional formulada pela Escola Superior de Guerra.

Embora seja nítida a integração de O Globo ao ambiente democrático, com inestimável contribuição ao debate público, é possível imaginar que o jornal não deixou de lado a idéia de que a imprensa deve ter uma missão, sobretudo nesse conturbado processo eleitoral de 2006.

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Professor de Economia da Universidade federal Fluminense, doutor em História Social pela USP, Rio de Janeiro