Há pouco mais de 15 anos, no Estado de S.Paulo, comentei a decrepitude da ditadura cubana – decrepitude, sim, já naquela época. Foi no ‘Caderno2’, onde assinei, por dois anos, uma coluna semanal sobre TV, chamada ‘Sintonia Fina’. No dia 16 de julho de 1994, minha coluna se dedicou a um bom documentário sobre Cuba, levado ao ar no programa Documento Especial, do SBT. Reproduzo, a seguir, trechos do parágrafo final do velho artigo, cujo título foi ‘A utopia virou refém da tirania em Cuba’.
‘A Revolução cubana, 35 anos atrás, deve ter sido de uma euforia magnífica, de uma dignidade sem par. Hoje, ela é um poço de desencanto. Ou de desespero. (…) Por certo, e isso ninguém contesta, em Cuba as crianças não morrem de fome como aqui. Nem ficam sem escolas como aqui. Mas somos obrigados a reconhecer, ainda que seja tarde: a utopia virou refém da tirania. Para os cubanos, a escassez é a regra; o padrão de sobrevivência, humilhante. E na `bolsa negra´ ninguém acha liberdade para comprar.’
Na década de 1990, a ‘bolsa negra’ – o mercado ilegal – já tinha ocupado todos os espaços da vida social em Cuba. Uma reportagem esplêndida de Humberto Werneck, publicada em maio de 1994 na revista Playboy, contou em detalhes como isso aconteceu. Sob o título ‘Viver em Cuba ¡no es fácil!’, o longo relato – que mais tarde seria republicado no livro Habana Vieja, com fotos de Claudio Edinger (DBA, 1997) – descreveu em detalhes os malabarismos da sobrevivência em Havana, cujos moradores eram sufocados por cerceamentos políticos e práticos. No plano político, tinham de declarar em gestos e palavras sua total anuência à discurseira fálica dos ícones do regime: homens barbudos, revólver na cinta e charuto na boca, que se esganiçavam ao microfone. No plano prático, muito mais premente, tinham de recorrer a métodos heterodoxos se quisessem driblar a fome. No plano político, fingiam concordar para se safar. No plano prático, transgrediam para se alimentar.
‘Estou cansada’
Numa de suas passagens inesquecíveis, a reportagem narrava os apertos dos cubanos que começaram a criar porcos dentro do apartamento, sem que as autoridades percebessem, para depois vendê-los na ‘bolsa negra’. Eram tempos de desespero. A União Soviética já não podia subsidiar a economia e, com isso, a subsistência virou um desafio de vida ou morte para a imaginação e para a fibra de cada um. Werneck sintetizou muito bem esse estado de coisas:
‘Sem gasolina e sem automóvel, sem gás e sem fósforos, sem rum e sem charuto, sem luz, sem sabonete. Falta tudo para o povo. Tudo, menos criatividade.’
Em 1994, muitos ainda acreditavam que as escolas e os hospitais em Cuba funcionassem direito. Eu, por exemplo, acreditava que lá as necessidades básicas estariam atendidas. Só o que parecia injustificável era a ditadura, embora não se possa falar em justiça social e em direitos humanos num país em que não há liberdade. Agora, em 2009, o quadro é bem pior. Já não se pode dizer que a ditadura exista ‘apesar’ das conquistas sociais. Ao contrário, a opressão fardada só está lá para ocultar à força o fiasco das tais ‘conquistas sociais’. As estatísticas oficiais não são confiáveis. No plano político, o regime é uma usina de falsificações. No plano prático, um despachante da escassez.
Em 1994, a cubana Yoani Sánchez não tinha 20 anos de idade. Estava apenas começando a se cansar dos comícios intermináveis de Fidel Castro. Agora, em 2009, ela está farta, como deixa bem claro no blog que criou em abril de 2007, Generación Y:
‘Estou cansada do macho envolto no seu uniforme verde-oliva, do adjetivo `viril´ associado à coragem, dos pêlos no peito mandando mais que as mãos na escumadeira. Toda a minha progesterona aguarda que essa parafernália tão robusta dê lugar a palavras como `prosperidade´, `reconciliação´, `harmonia´ e `convivência´.’
Sob embargo
Como fazer um blog em Cuba também ‘no es fácil’, pois o acesso à internet é controlado pela polícia, Yoani foi obrigada a lançar mão da velha criatividade dos cubanos para postar seus artigos na rede. Um de seus truques é se passar por turista alemã e entrar na rede dentro dos hotéis internacionais. Ela teve ainda de aprender a conviver com agentes da repressão que a seguem por toda parte e, mais de uma vez, levaram seu marido, o jornalista Reinaldo Escobar, a prestar esclarecimentos. ‘O machismo tem só um lado positivo’, ela escreve. ‘Confrontados com o dilema de quem prender, era meu marido que levavam toda hora.’
O esforço deu resultado. Generación Y transformou sua autora em celebridade mundial. Em 2007 ela foi eleita uma das cem pessoas mais influentes do mundo pela revista Time. Depois foi agraciada com vários prêmios internacionais, mas não pôde recebê-los pessoalmente porque o governo não lhe concede a autorização para sair do país (ver aqui nota deste Observatório). Yoani Sánchez está sob embargo do regime. Sob bloqueio.
Na sexta-feira (6/11) à noite, ao lado do senador Eduardo Suplicy (PT-SP) e do professor e editor Jaime Pinsky, participo de um debate, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo, para marcar o lançamento do primeiro livro de Yoani Sánchez no Brasil: De Cuba, com Carinho (Editora Contexto). A obra reúne relatos que ela publicou no blog. São crônicas inspiradas, com flagrantes de uma realidade em que a ‘normalidade’ é ultrajante. Dona de um estilo literário que se lê com prazer, Yoani pensa com desenvoltura, sem escorregar pelas pregações doutrinárias. É uma ‘intelectual verdadeira’, como a define o posfácio de Demétrio Magnoli. Ela repudia os que lhe dizem que discordar do governo é trair a pátria.
Ah, sim: no debate, como é óbvio, Yoani Sánchez não estará conosco. O seu corpo continua sob embargo, acorrentado à ilha dos irmãos Castros. Mas as suas ideias escaparam e seguem escapando, para bem da verdade e da melhor criatividade do povo cubano.
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Jornalista, professor da ECA-USP