Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A Paixão segundo o açougueiro

Nada tenho contra açougueiros. Pelo contrário, tudo a favor. Eles são capazes de, com golpes precisos, transformar sanguinolentas e desajeitadas peças de gordura, ossos e carne em suculentos bifes ou apetitosos picadinhos ou tudo aquilo que as cozinheiras encomendarem. Da mesma forma, sou a favor de pescadores, médicos e todas as profissões, embora torça o nariz para coletores de impostos: mas, desde que estes sejam honestos, o que se há de fazer?

A maioria dos profissionais é mesmo útil à sociedade, embora um grande risco que correm é olhar o mundo a partir de seu exclusivo ponto de vista. Quando caem nessa armadilha, só conversam sobre um assunto, freqüentam um restrito círculo de colegas e se refugiam em pálida gama de interesses. Em suma, mergulham em insuportável mesmice.

Enquanto eu assistia, por duas vezes, ao filme A Paixão de Cristo dirigido por Mel Gibson, pensava que, em se tratando da versão de um mito, é perfeitamente legítimo que ela assuma o formato que seu diretor considerar mais apropriado. Mesmo os quatro evangelhos são uma obra plural e, na versão final de cada um deles – de resto atribuídas a um coletor de impostos, dois pescadores e um médico –, se aglutinam inumeráveis lembranças de homens e mulheres, de várias origens e extratos sociais.

Desde então, a pintura, a arquitetura, o teatro, a literatura e a retórica fizeram infinitas interpretações. Mais recentemente, o cinema materializou a vida de Jesus Cristo em versões épicas, socialistas, adocicadas, hippies etc. Essa diversidade só é possível porque se debruça sobre um mito. Como assim, ‘mito’? A rigor, mitos são mais que enredos imaginativos: são, sim, narrativas orais ou escritas que pretendem elaborar (vale dizer: entender, explicar, acalmar, dar palavras e emoções) as inquietações, anseios e possibilidades humanas – substância de nossos enigmas fundamentais. E porque são fundamentais, os mitos atravessam as eras.

À semelhança de esponjas, os mitos constituem-se de teias elásticas e de buracos, que as cercam por todos os lados; ou vice-versa. Essa porosidade possibilita que indagações ancestrais sejam continuamente reapresentadas e se encharquem de seivas e sucos corporais gestados no tempo presente de seguidas eras, e assim produzam vida.

Banho de sangue

Por tudo isso, nada contra que um açougueiro, ou um cineasta de filmes de ação – ou ambos, no caso de Gibson –, apresentem sua versão do mito da paixão de Cristo. De novo: como assim, ‘mito’? De fato, análises integradas de ciências como lingüística, semiótica, história, política, antropologia e até química e astronomia, mostram cada vez mais que os relatos evangélicos não pretenderam ser a descrição positivista de um fato como ‘realmente aconteceu’. Se assim fosse, forçosamente se reduziriam a uma única narrativa.

Os quatro evangelhos canônicos e as centenas de apócrifos são a vida de Jesus já devidamente interpretada: os relatos da Paixão alinham várias citações tentando mostrar ao leitor que ele é o Servo de Javé anunciado por Isaías (sobretudo o capítulo 53) no qual nosso sofrimento ganha sentido e nossas culpas são purgadas. Por ser um mito, com base histórica, é que há dois milênios as gerações podem beber dessa fonte, cada uma sentindo um sabor diferente. É por isso que o cineasta-açougueiro teve condições de fazer sua obra, mesmo que, fundalistamente, proclame ter filmado com rigor histórico. [Que dizer então da absurda ‘liberdade artística’ nas cenas em que Jesus é jogado fora do parapeito da estrada e as correntes impedem que se esborrache lá embaixo, em que carrega a cruz inteira e não a parte de cima, em que é pregado na palma das mãos (e não nos pulsos) e em que a cruz é revirada para rebater a ponta dos pregos?]

As versões sobre a Paixão localizam-se em algum ponto de um eixo cujos pólos são a proximidade e a distância [remeto-me aqui ao pensador alemão Georg Simmel (1858-1918), que freqüentemente utiliza essa dialética em sua obra monumental – ver Essays on religion, Yale: Yale University Press, 1997]: ora acentuam a humanidade sofrida e carente de Jesus – que todos somos –, ora pendem para o Cristo triunfante, divinizado – que nos fascina e sustenta. Em seu filme, Gibson optou pelo pólo da proximidade, ao expor a carne torturada de Jesus. Mas aí reside flagrante limitação. Ele empregou requintes de açougueiro e técnicas de cinema de ação, um estilo cinematográfico sensacionalista que se caracteriza pelo ritmo acelerado, pela estetização da violência e da crueldade (através da câmera lenta e de planos próximos), por provocar nenhuma reflexão ao abusar de estereótipos e emoções ralas e pré-formatadas. Atualmente isso rende bilheteria. [Que tal, se Gibson repassasse 3 x 10% do lucro de seu filme a projetos sociais das religiões envolvidas: cristianismo (catolicismo e protestantismo) e judaísmo?]

Em seqüências alucinantes, o sofrimento, a tortura, a humilhação, o desamparo psicológico, o sem-jeito e o desespero espiritual de Jesus são atirados em nossa cara e nossa alma. Mais próximos do que Tomé, encostamos o nariz nas feridas, vivenciamos cara-a-cara quedas ridículas, bordoadas em câmera lenta e volúpias de sadismo (NOVE minutos de flagelação!), levamos um banho de sangue e de maquiagem que espetaculariza a dor do nazareno e a crueldade de seus algozes – membros da elite de compatriotas e aparato imperial.

Patrimônio espiritual

Mas, será que essa esponja encharcada e rubra, que mata a sede moderna de violência e de vingança, terá sido a melhor forma de interpretar o drama do Calvário? Dialeticamente, respondo que não… e sim.

Não. Imagine-se, por hipótese, que ninguém conhecesse a personagem, vítima daquele espancamento infindo. Nesse caso, se veria que esse filme em nada se distinguiria de outros exercícios de sadismo que Hollywood anda produzindo: a diferença está em nós, visto que o cineasta contou com o conhecimento prévio do público (‘ah, é Jesus que está ali’) para compensar suas limitações. Vá lá que um açougueiro faça um filme, mas será que ele enfocaria com tanto desrespeito e insensibilidade a carne exposta de um parente, um amigo? Me pergunto se Gibson filmaria com tamanha desenvoltura uma improvável tortura de que seu pai fosse vítima? Trocadilhando, eu diria que faltou com-paixão ao diretor.

Sim, reconheço dois méritos em no filme: ele destaca a humanidade de Jesus; afasta-se de certo tipo de beleza física em voga. Primeiro mérito, Gibson elege o correto ponto de partida ao tentar aproximar-se da complexa figura do nazareno como se o visse pela primeira vez, quanto possível limpo da ‘maquiagem simbólica’ acumulada ao longo de milênios em camadas sucessivas que às vezes intoxicam nossa percepção. Dessa intoxicação resultam distorções do tipo: ‘Ah, Jesus não sofreu tanto assim, afinal ele tem algo de divino’; ‘Ele sabia que ia ressucitar mesmo’; ‘Ele não gritou pelo pai dele: apenas recitava um salmo’. O fato é que, só a partir de sua humanidade se pode perceber algum significado no mito-Jesus: ‘Esse sujeito extraordinário tinha algo diferente, misterioso’.

Segundo mérito. A carne sagrada em nossa modernidade é aquela triunfante, turbinada, sarada, siliconada, bronzeada, anabolizada, definida, malhada, arfante, estonteante (… mas solitária). Pois, invertendo essa tendência, o filme nos apresenta a incômoda visão de um dentre tantos seres torturados de quem desviamos o olhar, nos afirma que o crucificado não veio a passeio, que aquela dor não foi o fingimento de alguém que pertence a outra esfera metafísica.

O sofrimento não é, propriamente, o que salva. O que salva, diz-nos a mensagem que emana do conjunto da vida de Jesus, é assumir na própria carne – solidária – a luta contra as razões do sofrimento dos irmãos. Isso vale para todas as pessoas de boa vontade. Nesse ponto, Jesus se insere no patrimônio espiritual de toda a humanidade.

Não posso saber se A Paixão de Cristo passou essas impressões – no final das contas, quem vai avaliar é você, espectador.

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Professor do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP