Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A pedagogia da escolha

Em recente editorial, publicado no dia 20/9/2015, o Correio Braziliense assim se posicionou a respeito da falta de qualidade na educação brasileira: “Os milhões de brasileiros reprovados na ANA [Avaliação Nacional de Alfabetização] são candidatos a engrossar as estatísticas dos analfabetos funcionais. Concluirão o ensino fundamental e talvez o médio, mas serão barrados nas universidades de ponta e nos empregos disputados. São condenados a perpetuar a pobreza. Só a escola de qualidade democratiza o saber e permite galgar degraus que conduzem à ascensão social. O diagnóstico, que se mantém ao longo das décadas, exige medicação eficaz. Embora com atraso, a receita precisa ser aviada. Ela passa necessariamente pela qualificação dos professores, melhora do material didático e modernização de métodos. Há que envolver a universidade no processo. O currículo dos cursos que formam docentes está desconectado da realidade. Alunos e mestres olham paisagens diferentes e falam línguas estranhas.”

A referida reflexão apresenta méritos e lacunas. Realmente, é impossível formular e manter projeto próprio de desenvolvimento sem manejo adequado do conhecimento. Aí reponta nova face da pobreza: mais comprometedora que a carência material é a pobreza política, ou seja, a dificuldade extrema de organizar o próprio destino com autonomia mínima. O problema do analfabetismo só será resolvido se superamos a maior indignidade humana que se chama ignorância produzida, uma vez que ela destrói a condição de sujeito político. A respeito, o sociólogo Pedro Demo, em Educação & Conhecimento: relação necessária, insuficiente e controversa (2000), apresenta comentário digno da maior atenção: “Pobreza política é fenômeno ainda mais grave que carência material, pois revela as entranhas da contradição dialética na história concreta, feita de minorias privilegiadas que exploram maiorias ignorantes. Qualidade formal pode crescer em direção inversa da qualidade política, ou seja, conhecimento pode facilmente distanciar-se de educação.” A argumentação do citado editorial do Correio Braziliense, intitulado “Sem ler, escrever e calcular”, tangencia esta conjuntura cultural importante, pois conforme salienta Demo “analfabeto é tipicamente o ignorante produzido, não aquele que nada sabe, porque esta condição inexiste histórica e culturalmente falando”.

Não podemos minimizar o resultado da ANA, referente ao ano de 2014: considerando 2,4 milhões de estudantes do 3º ano do ensino fundamental, contemplados por 49 mil escolas públicas, que fizeram a referida prova, 11% atingiram o nível de leitura e de compreensão de texto considerado ideal pelo Ministério da Educação, e 43% dos alunos foram capazes de lidar com a linguagem matemática. Estas competências e habilidades são necessárias para a formação, compreendida como um processo de criar-se a si mesmo. Porém, os dados estatísticos em tela precisam ser interpretados sem a ilusão imediatista de que os estudantes podem passar de um estado de ignorância para um estado de conhecimento, sobre um tema concreto, no curto intervalo de tempo de uma sessão de aula. Esta crença, que simplifica a existência de processos inerentes a toda aprendizagem, é uma fonte de mal-estar e frustração tanto para o professor quanto para os alunos e alunas, fundamentalmente porque não coincide com a realidade. A negação da realidade, sabemos, provoca um sentimento pessimista de impossibilidade.

A tradição excludente de nossa sociedade

Na aprendizagem, como em toda viagem, deve-se conhecer o local de partida e saber para onde se quer ir; o processo são os passos do caminho, cada um dos marcos que se atravessa conduz a uma mudança paulatina na qual o tempo representa um papel importantíssimo. O pensamento transforma-se com a aprendizagem, e toda transformação pressupõe um processo que requer determinado tempo. Se prescindirmos dele, a transformação não ocorre, e, se o sujeito for obrigado, memoriza sem compreender; assim, a aprendizagem não resulta operativa, pois ele não pode utilizá-la fora do contexto em que a adquiriu, nem se beneficia das mudanças intelectuais que ocorrem nos processos construtivos de novos conhecimentos.

Sobre a modernização de métodos, o editorial do Correio Braziliense cita a questão vagamente, sem entrar no mérito de quais procedimentos específicos as escolas deveriam fazer uso para qualificar o aproveitamento dos estudantes. O tom alarmista presente no texto jornalístico prejudica a sobriedade reflexiva sobre o impositivo ideológico sofrido pela educação, como a ideia corrente de que educar é, necessariamente, formar pessoas que possam gerar renda.

Superficialmente, o editorial do Correio Braziliense tocou em questões de pedagogia fina, como podemos observar no pertinente comentário de Rogério Almeida e Marcos Ferreira-Santos, em Aproximações do Imaginário: bússola de investigação poética (2012): “A escola não é, como se supõe na visão escolacentrista, o espaço privilegiado da educação, mas apenas mais uma instância de formação entre tantas outras. E a pedagogia da escola, do modo como foi e está sendo instituída social e historicamente, opõe-se à pedagogia da escolha, justamente por abolir de suas práticas a dimensão sensível, criativa, simbólica, imaginária, convivial, afetual, estética da vida, dimensão que exige a prática da escolha, a abertura ao erro, à incerteza, à inconclusão, ao acaso, ao fortuito, dados que fazem parte da vida, mas que são ignorados pelas pedagogias oficiais.” Portanto, o processo de expropriação do sentido da escolarização tem origem na tradição excludente de nossa sociedade, que ainda não compreendeu em toda sua radicalidade o papel emancipatório da educação, considerando sua dimensão ética, pluralista e multicultural.

***

Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor universitário, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários