Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A pior das corrupções

A postura das ‘autoridades’ sobre a mortandade de policiais em São Paulo que fazem hoje a notícia do dia-a-dia mostra, antes de mais nada, o grau de qualificação dos responsáveis pela sociedade. Estamos falando de homens públicos e da imprensa. Os primeiros, na democracia representativa, deveriam zelar e recriar as instituições. E a imprensa responde pela sua missão de responsabilizar-se pela geração dos sentidos na sociedade visando construir o tecido social.


Os primeiros são responsáveis por provocar o descrédito social com suas ações. No jornalismo, que não se cansa de dar a mesma notícia, a pauta preferencial das redações migrou para ações de violência (contra o Estado ou contra a vida). A segmentação do jornalismo traduz para as manchetes o perfil da editoria de polícia. Notícia fácil e desprovida de elementos para a reflexão, pasteurizada ou eivada de ideologias, não muito raro com uma carga de rancor que apresentadores de TV não conseguem dissimular. A notícia está no conflito que gera o novo. O novo é o desentendimento de um processo cada vez mais matizado por intermediados. O novo da imprensa está baseado na falácia de que o ‘crime’ é o melhor vendedor de jornais.


As temáticas sociais no jornalismo impresso acabaram valendo pelo conflito fácil do assassinato, dos atentados e das ações policiais contra os lobistas com ou sem mandato, dos sanguessugas. A reflexão, nas redações, é limitada. Os fatos chegam incompletos aos leitores, quase in natura. Carregados de ‘parece que é assim’, como recentemente vimos no episódio da nacionalização do gás boliviano – que, inclusive, levou o chanceler brasileiro a alertar ‘que o Brasil não tem marines’, e que a política externa nacional não é a da invasão e expropriação, como definiu o pensamento maniqueísta, fazendo do episódio mais uma ação eleitoreira; irresponsável, por sinal.


Idas e vindas


Estamos diante da pior das corrupções possíveis: a corrupção das instituições sociais. Causa principal da falta de referência. Sem instituições com autoridade estamos à mercê da barbárie. Comandos paralelos, à margem da lei, tentam usurpar a autoridade e tecer à sua maneira o tecido social. E o que é pior: sempre pela força, revelando alto grau de autoritarismo. Relegam a segundo plano a razão e descartam qualquer solução negociada. É a hegemonia da ‘lei de Gerson’, a de levar vantagem em tudo, que não serve para balizar os relacionamentos sociais.


Mesmo assim a pauta principal do jornalismo falha na apuração. Não desenvolve ações da valorização do homem. Por todos os pontos de vistas as interpretações dos fatos e seu enquadramento no processo de tessitura da sociedade continuam pragmáticas e distante de oferecer à sociedade uma interpretação madura e, às vezes, até mesmo honesta.


Os jornais e/ou as autoridades precisam qualificar as discussões sobre a família. Já passou da hora de uma postura mais ética com a preocupação da preservação da espécie. Os debates ainda se prendem ao moralismo burguês e o resto é tratado como aberrações. A saúde mercantilista afasta da sanidade a maior parcela da sociedade. Os temas da produção elegem com freqüência o desemprego como mal maior.


Numa época em que o homem abdica de sua condição de ‘burro de carga’ para deixar o trabalho para as máquinas (vide a fábrica da Volkswagen do ABC paulista, que usa 11 homens para fazer o trabalho que no Paraná utiliza só 5 pessoas), não se estruturam processos de ocupação e renda para os excedentes do mercado de trabalho, condenados a ganhar o pão com o suor do rosto e à exclusão do paraíso das conquistas tecnológicas. Não há uma nítida política contra o desamor ao próximo. E na ponta do processo, a Justiça tem razões que a própria Justiça desconhece.


A ausência de abordagens conseqüentes pelos meios de comunicação, como fizeram os primeiros modernistas na implantação do pensamento liberal, pode estar levando aos indícios da falência das instituições, com a corrupção de suas funções neste mundo que se consolida com formato novo, marcando a emergência de novos valores, procedimentos e pensamento diferenciado. As ações impetradas pelo segmento político nos últimos tempos conduziram a sociedade à desestabilização total do sistema político, com as idas e vindas das CPIs, malfeitas e sujeitas a contestações por seus resultados. Isto porque, como instrumentos de busca do poder, mais do que como ações saneadoras, enveredaram por ações e posturas que antes de revelar equilíbrio revelaram o desrespeito às autoridades a qualquer preço.


Contratos sociais


As ações de marginais contra policiais demonstram que o que se contesta com ataques covardes é a autoridade do Estado. Algo está fora de lugar. E o pior disso tudo é que o autoritarismo dos criminosos passou a ser exercido a partir das prisões, instituições destinadas ao isolamento daqueles que a sociedade crê não ter condições de viver em sociedade. Minimizou-se ao mínimo o exercício da autoridade do Estado com relação ao crime, que é o banimento do convívio social dos desajustados às regras vigentes.


Muito pior do que as mortes precoces, lamentáveis e inadmissíveis, é a implantação de um Estado Bárbaro, no qual a autoridade do Estado declina para o nada ou para respostas autoritárias, que alguns preferem, ao analisá-las como efeitos compará-las a uma guerra civil.


O problema está nas causas. E ao que parece este é o sentido que a imprensa de forma geral se nega a gerar a partir de fatos. O caos é muito maior do que a atitude covarde de escolher a polícia como alvo, numa atitude simplesmente terrorista e vingativa. Com sua habitual competência, o Fantástico, no fatídico domingo do Dia das Mães (14/5), apresentou a vida de um bombeiro assassinado e deu o mote – ‘Sua missão é a de salvar vidas’ –, impelindo a opinião pública não a uma reflexão, mas cobrando ações, talvez tão vingativas quanto as que estamos vendo. Com certeza o resto da imprensa e as revistas semanais irão, também com competência, abordar os efeitos de um processo guerrilheiro-foquista-inconseqüente. Dificilmente irão traduzir causas e cobrar os responsáveis pela elaboração e execução dos contratos sociais que poderiam traduzir nossa época e revigorar as instituições.


Realidade típica


O poder que corrompe cede espaço a ações terroristas que vão desde os excessos do MST (uma organização que mais do que terra quer o poder, no melhor estilo anos 1970) à ação da neoUDR, que não titubeia em chorar miséria na boléia de caminhonetes Hilux e de ‘imolar’ em praça pública ‘suas’ máquinas agrícolas (suspeitas, diga-se, de estarem com processo de busca e apreensão por falta de pagamento das parcelas do financiamento; portanto, que não lhes pertencem mais).


O poder que corrompe mais do que fazer Justiça preocupa-se em tirar de cena aqueles que atrapalham o rumo da conquista de mais poder. Enxovalham as instituições que não estão sob seu comando apegando-se à falta de ética, e renegam o próprio processo de acesso ao poder.


Neste cenário o que se discute é apenas a relação de sentido particular. Não se implementa com a urgência necessária o acesso à Justiça. E esta julga estar sendo cumprida quando pensa promover o banimento da vida social de marginais que, numa realidade bem típica de nossos dias, continuam com seus afazeres, utilizando os recursos da tecnologia que lhes chegam às mãos. E a nós, povo pacífico e ordeiro, só resta o espanto de uma guerra sem quartel que no domingo, dia 14, vitimou mais brasileiros do que iraquianos. Com um detalhe: no Iraque há uma guerra em andamento.

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Jornalista e professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)