‘Uma das vantagens deste mundo é que podemos odiar e ser odiados sem sequer nos conhecermos.’ (Alessandro Manzoni, poeta italiano do século 19)
Os vários comentários feitos pelo ex-presidente Lula no decorrer de seus dois mandatos sobre a ação da imprensa proporcionaram uma farta e prodigiosa munição aos articulistas e editorialistas de jornais influentes, mestres consagrados na exímia arte da esgrima linguística. A palavra escrita tem um poder de fogo que os profissionais do vernáculo, cientes dessa prerrogativa, buscam aperfeiçoar em diários e suados exercícios de arquitetura mental. Protegidos por estandes de vidro e armados com um teclado de laptop, eles têm a seu favor uma arena majestosa e ensolarada para a prática do tiro ao alvo. Afinal, a democracia é um campo aberto que favorece a exposição pública de pensamentos e opiniões e, por conseguinte, as réplicas e tréplicas de variados matizes.
Nas vésperas do pleito presidencial de 2010, uma reportagem de Lucas Abreu Maia publicada no jornal O Estado de S. Paulo e reproduzida pelo Observatório da Imprensa, em 21/9, revelava o grau de irritação de instituições representativas como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a ANJ (Associação Nacional dos Jornais) e a Abert (Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão), diante das declarações do então presidente Lula sobre o papel da imprensa. Sob o título ‘Entidades reagem a ataques de Lula‘, a matéria colocava na mesa a bazófia dita em tom magoado por um presidente empenhado em uma campanha de tudo ou nada, e emocionalmente arisco em suas colocações, resultado talvez do confronto diário com uma mídia beligerante em seu poder magnificente.
A gramática do óbvio
Desde a época de líder sindical, nos idos da década de 1970, Lula deu mostras de se sentir mais em casa e desbragadamente à vontade exorcizando os demônios em praça pública e em mangas de camisa. A tal da compostura que um cargo presidencial costuma exigir de seus ocupantes jamais inibiu o ex-presidente de soltar a voz em concorridos comícios eleitorais e soletrar o óbvio que habita no inconsciente coletivo. ‘Lula presidente surpreenderá a nação, pois adotará outra gramática do poder’, escreveu o amigo e coordenador inicial do Programa Fome Zero, o frade dominicano, escritor e militante dos movimentos de Direitos Humanos Frei Betto, logo após a confirmação da vitória de Lula nas eleições de 2002.
Oito anos depois, em uma inauguração em Brasília com representantes da comunidade científica, Lula creditou o sucesso de seu governo à coragem de ter feito ‘o óbvio’. Anteriormente, em um evento no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, o ex-presidente já havia sublinhado que ‘o óbvio é a única coisa que um governante tem que fazer’. Uma deixa providencial para os caçadores de bordões sempre atentos e ávidos em desossar uma presa linguística de fácil digestão. Imediatamente, o Estadão pôs em campo o eficiente Rolf Kuntz para ministrar lições de ‘óbvio’, convenientemente traduzido como sinônimo de bom senso, qualidade esta que, segundo o jornalista, faltou a Lula em muitas de suas realizações políticas. ‘Se o óbvio é o sensato, Lula fez o oposto do óbvio em parte de sua gestão’ (‘Lula e a política do óbvio‘, 29/12/2010).
Sem papas na língua
Ressuscitando os palanques e os comícios a céu aberto de sua militância sindicalista, Lula introduziu um novo estilo de impor sua presença na mídia, menos como primeiro mandatário e muito mais como porta-voz dos brasileiros.
Essa disposição de encarnar o protótipo do cidadão comum na correlação de alguns de seus pontos mais sensíveis, como o trabalho, a família e a paixão pelo futebol, alçou o ex-presidente a um inquestionável e extraordinário patamar de liderança e popularidade pessoais, criando-se um fenômeno surpreendente e, de certa forma, perturbador, aferido imediatamente pela sensível ótica da mídia e de outros setores elitistas do país, dadas as inevitáveis implicações que um possível culto à personalidade tende a introduzir em uma sociedade democrática.
Desabafos do tipo ‘Vamos derrotar alguns jornais e revistas que se comportam como se fossem um partido político’ ou ‘Nós somos a opinião pública e nós mesmos nos formamos’, expelidos de maneira atabalhoada em exacerbados comícios eleitorais durante a campanha da candidata do PT, Dilma Rousseff, foram prontamente revidados de forma coesa e emparelhada, no melhor estilo de artilharia pesada, visando à neutralização das declarações do então presidente.
Em editorial, O Globo deduziu das palavras de Lula um provável plano de cerceamento da liberdade da imprensa e ‘um entendimento autoritário da função dos meios de comunicação’. Valendo-se de palavras afetadas e de sentenças pedantes de difícil compreensão, o jornal creditou os desabafos pessoais de Lula a uma espécie de complô da ‘vulgata ideológica dos intelectuais orgânicos do lulopetismo’ e à ‘percepção lulista’ de considerar a imprensa ‘um instrumento de manipulação da sociedade’. No mesmo editorial (‘Lula e a visão autoritária da imprensa’, 21/9/2010), o ex-presidente foi apontado como déspota (‘como se tomado pelo espírito do Rei Sol, um Luís 14 tropicalizado’), desequilibrado (‘o presidente foi jogando às favas o equilíbrio’), insensato (‘Lula radicaliza na insensatez’) e burro (‘tosca engenharia de raciocínio’).
Já na reportagem do Estadão, o ex-presidente foi taxado de intolerante pelo presidente da OAB, Ophir Cavalcanti, que viu na atitude de Lula um ato ‘contra a liberdade de imprensa’ e ‘um desserviço à Constituição e ao Brasil’. Declarações essas que receberam considerável reforço, alguns dias depois, na entrevista do mesmo Cavalcanti veiculada pela Folha de S.Paulo (‘Presidente da OAB condena ataques à imprensa’, 25/9/2010). Avaliando o ‘clima de acirramento’ pré-eleitoral da campanha, o presidente da OAB tocou no ponto nevrálgico da questão, responsável por todo o arsenal bélico arremessado sobre Lula. Disse ele: ‘Homens e pessoas não devem ter a mesma força que as instituições.’ Pensamento compartilhado pela Abert, que conclamou ‘as entidades representativas da liberdade de imprensa a ficarem sempre atentas’. Indo mais fundo na reação conjugada da imprensa, a Anaj detectou em Lula um lamentável e preocupante desconhecimento em relação ao papel da imprensa nas sociedades democráticas.
Um ‘culto despropositado’
Passados alguns meses dessa contenda de viés mercadológico, a imprensa retornou ao tema, dias após a posse de Dilma Rousseff, desta vez utilizando-se do aguerrido esgrimista linguístico Demétrio Magnoli. Tendo como pretexto a análise dos discursos proferidos pela nova presidente, o articulista se sentiu a cavaleiro para desacatar o dirigente que se despedia, a quem chamou de ‘chefe de facção’, pouco merecedor da ‘louvação desmedida’ de Dilma. Repetindo o argumento-padrão adotado pelas empresas de comunicação – ‘Democracia é o regime das instituições, não dos líderes’ –, Magnoli afunilou o conceito desse regime político, reduzindo-o a um embate maniqueista e interesseiro entre dois polos antagônicos: instituições e empresas, que seriam o lado bom da história, versus líderes populares, o aspecto negativo e de risco. Uma metáfora ardilosa, já que a democracia não exclui a presença carismática de autoridades políticas legalmente constituídas.
Desmerecer autênticas qualidades positivas, tais como a simplicidade, simpatia e o discurso caloroso – para citar alguns atributos pessoais que parecem acompanhar o ex-presidente –, pela possibilidade de as mesmas favorecerem ‘o culto despropositado’ a um dirigente ou político na vida pública, é um ponto de vista que chega a ser ofensivo ao eleitor brasileiro que avança no caminho de sua maturidade política. A democracia não é um sistema frágil que possa ruir por conta de um presidente sem papas na língua que falou o que devia e o que não devia em discursos desaforados no decorrer de uma campanha eleitoral. A afirmação de que ‘o culto a Lula é uma ferida na alma da democracia’ (‘Dilma, interrompida’, 06/01/2011, no Globo e Estadão) soa como artificial e forçada, já que a admiração por um político não se configura, no significado exemplar do termo, em adoração, veneração ou ‘culto’.
Poder econômico e imprensa
Mas qual seria de fato o papel da imprensa nas sociedades democráticas do século 21? Retornando ao editorial de O Globo, a resposta do jornal a essa questão brigaria com ‘a visão maniqueista lulopetista da imprensa’ para a qual a mídia precisa estar subordinada ao Estado. ‘É inconcebível para esses (lulopetistas) que a imprensa profissional – que precisa ser rentável para se manter independente, e o mais distante possível de verbas administradas pelos poderosos do momento – cumpra uma função pública, e disto têm consciência profissionais e acionistas das empresas de comunicação’, assinalava o editorial.
Para o jornalista e sociólogo espanhol Ignacio Ramonet, autor do livro A Tirania da Comunicação (1999), com o avanço da globalização as grandes empresas de mídia juntaram todas as formas de comunicação em um mesmo saco, da cultura de massa à publicidade e informação. Um exemplo perceptível é a mudança ocorrida nos suplementos literários dos jornais, hoje travestidos em desembaraçados balcões de venda das editoras e livrarias, tornando difícil o leitor distinguir o que é processo de persuasão, marketing ou utilidade cultural.
Constituindo-se em grandes grupos que englobam a imprensa, rádio e TV (com suas linguagens e mensagens, antes distintas, agora misturadas e mercantilizadas), essas megaempresas acabam exercendo pressão sobre os governos no sentido de que não sejam cerceadas ou limitadas em seus negócios. Ramonet afirma que a mídia no Ocidente sobrepujou o poder do Estado, representado pelo Executivo, Legislativo e Judiciário, ficando abaixo apenas do poder econômico. Lembra ainda que, há algumas décadas, os meios de comunicação representaram no contexto democrático um recurso dos cidadãos contra os abusos desses três poderes, daí serem mencionados como um quarto poder.
Diretor da edição espanhola do jornal Le Monde Diplomatique, Ramonet, de 67 anos, observa também que, à medida que a globalização se acelerou, a imprensa perdeu a sua função de reagir e resistir, de se impor como um ‘contrapoder’, de ser, enfim, ‘a voz dos sem-voz’. De acordo com o sociólogo, hoje a mídia seria de fato o segundo poder pela sua ação e influência, funcionando como um aparato ideológico da globalização. ‘O mais difícil de perceber não é a informação distorcida, mas a informação oculta’, alerta. ‘Na atual fase de globalização assiste-se a um confronto brutal entre o mercado e o Estado, entre o setor privado e os serviços públicos, dando a impressão de que grupos econômicos planetários ou conglomerados de comunicação de dimensão continental são mais importantes, pelo peso de seus negócios, do que os governos e Estados.’
Discursando na cidade de Barcelona, em agosto de 2010, depois de receber o Prêmio Antonio Asensio de Jornalismo, Ignacio Ramonet surpreendeu a plateia ao afirmar que o jornalismo atravessa uma ‘grave crise de identidade’. Ao sentenciar que a imprensa escrita vive um dos momentos mais difíceis, Ramonet desmentiu aqueles que proclamam que ‘a informação circula mais livre, mais abundante e mais transparente do que nunca’. Ao contrário do que muitos pensam, disse, ‘a massa de informação oculta supera o imaginável em muitos temas’.
Deslizamentos na região serrana
Nem bem 2011 se iniciou e já se pôs em marcha o processo de desestruturação daquilo que muitos entendem como o ‘mito’ Lula. Na recente tragédia na região serrana do Rio de Janeiro – um dos dez maiores deslizamentos do mundo nos últimos 111 anos, pela avaliação da ONU – achou-se imediatamente um culpado na figura do governo federal (gestão Lula), que somente liberou 39% dos R$ 425 milhões previstos para 2010 para prevenção de desastres, sendo que a região serrana nada recebeu (‘Verba para prevenção fica no papel’, O Globo, 13/01/2011). No final da matéria fica-se sabendo que foram destinados R$ 377 milhões ao Rio de Janeiro pelo Programa de Resposta aos Desastres e Reconstrução, o segundo maior volume de recursos federais, ficando apenas atrás de Pernambuco (R$ 380 milhões).
Porém, o que faltou dizer em meio a tantos números é que um presidente da República não tem a função de monitorar as mais de 5 mil prefeituras brasileiras em seus variados projetos, inclusive de contenção de encostas, nos procedimentos técnicos adequados para se habilitarem a pleitear verbas federais necessárias à execução das obras. Por incapacidade e falta de conhecimento, muitas prefeituras perdem a oportunidade de manter profícuas e permanentes parcerias técnicas com o governo federal e somente após alguma tragédia climática, sob o regime de calamidade pública, se lançam ao encalço das verbas emergenciais para remediar o irremediável.
Em outra reportagem, também em tom acusatório, a administração Lula é culpabilizada pelo ‘inchaço’ de funcionários públicos na esfera federal (‘No governo Lula, mais 82 mil servidores’ – O Globo, 16/01/2011). Segundo os números apresentados, ‘pelo menos 82.749 funcionários civis foram incorporados à máquina do governo federal nos últimos oito anos’. Dito isso e lendo um pouco mais, topa-se com os seguintes dados: ‘Os funcionários civis do Executivo na ativa passaram de 485.741 em dezembro de 2002 para 568.490 em novembro de 2010 (…) Em números absolutos, a maioria das contratações foi feita na área de educação: 49.286. Isso decorre da criação de universidades públicas e escolas técnicas.’ Enfim, dos 82,7 mil novos servidores contratados quase 50 mil foram professores e pessoal auxiliar. Um percentual que faz sentido, em se tratando de um país que vem sendo estimulado por todos os setores da sociedade a investir maciçamente em educação e treinamento.
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Jornalista, Rio de Janeiro, RJ