De acordo com o que dispõe a Constituição brasileira no artigo 5°, inciso LVII, ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’. Esse dispositivo é o reflexo, na legislação, do princípio denominado ‘presunção de inocência’, consagrado na doutrina jurídica democrática e atenta à proteção dos valores e direitos fundamentais da pessoa humana. Um fato trágico ocorrido recentemente na França e divulgado com certa ênfase pela imprensa, tanto pelos jornais quanto pela televisão, dá ensejo a que se verifique, pelo tratamento dado à matéria e pela linguagem utilizada, o estrito respeito da imprensa francesa pelo princípio da presunção da inocência, em contraste com o que frequentamente se verifica na imprensa brasileira.
É interessante observar, antes de tudo, que no caso da França o respeito à presunção de inocência tem um significado histórico. A Constituição francesa atual, que é de 1958, não contém um dispositivo expresso sobre esse princípio, mas deixa claro o seu acolhimento quando estabelece, no Preâmbulo, que o povo francês proclama solenemente sua vinculação aos Direitos Humanos definidos pela Declaração de 1789. E no artigo 9° dessa Declaração está expresso que toda pessoa será presumida inocente até que seja declarada culpada em julgamento regular. Assim, pois, é muito significativo que a imprensa de hoje demonstre estrito acatamento a um princípio enunciado em 1789.
O fato que dá ensejo a estas considerações ocorreu no dia 8 de janeiro de 2010, em local público e à luz do dia, não havendo dúvidas quanto aos seus contornos gerais. Dentro das dependências do Liceu Darius-Milhaud, escola de nível médio localizada na região parisiense, um aluno de 18 anos de idade esfaqueou um colega da mesma idade, que acabou falecendo num hospital poucas horas depois. Segundo depoimentos de outros colegas, o que originou a tragédia foi o fato de que a vítima namorava ou tentava namorar uma irmã do agressor, também aluna da mesma escola.
O cuidado da polícia
E aqui cabe a primeira observação quanto ao tratamento dado à matéria pela imprensa francesa. Em nenhum lugar foram usadas as palavras ‘crime’ ou ‘assassinato’ para noticiar a ocorrência. O fato tem sido referido como agressão ou drama e sem qualificativos. Em relação ao estudante que deu as facadas no colega, a imprensa sempre se refere ao ‘suposto’ ou então ‘presumido’ autor. Enquanto não houver uma decisão judicial afirmando sua culpa, ele será sempre referido como autor suposto ou presumido, jamais como criminoso ou culpado. E em nenhum lugar, em momento algum, apareceu o seu nome. A par disso, ele já foi ouvido pela polícia e isso foi noticiado, mas não foi mostrado pela televisão nem fotografado pelos jornais.
A televisão foi ao Liceu e entrevistou alguns alunos da escola, que se encontravam no local quando da ocorrência, e essas testemunhas informaram que foi usada uma faca de cozinha e manifestaram discretamente sua opinião sobre o motivo provável, sem usar qualquer qualificativo quanto aos fatos e seus participantes, limitando-se a informar que o agressor sempre foi pacífico e bem relacionado com os colegas. Em nenhum caso foi revelado o nome da testemunha. A polícia, numa nota sucinta e discreta distribuída à imprensa, informou que ‘o suposto agressor foi ouvido para verificação da ocorrência de homicídio voluntário’. Uma pessoa morreu vítima de facadas. Houve, portanto, homicídio, mas só depois de concluído o processo judicial é que se poderá ter certeza quanto à intenção de matar e se saberá se o agressor estava em condições mentais que lhe permitissem controlar os seus atos e avaliar o seu significado. Daí, o cuidado da própria polícia, refletido no tratamento do caso dado pela imprensa, quanto à qualificação jurídica da ocorrência e do agressor.
Evitar antecipação de julgamentos
O fato não deixou de ser noticiado, com toda a ênfase justificada por seu significado humano e social. Dois ministros de Estado, o da Educação e o do Interior, foram ao Liceu conversar com os responsáveis pelo estabelecimento para ter informações precisas e avaliar os aspectos relacionados com a segurança nas escolas. Mas o drama humano e familiar, decorrente da morte trágica de um jovem e do envolvimento de um colega na ocorrência, perceptível nas entrelinhas, não teve tratamento escandaloso e sensacionalista, como, infelizmente, é muito comum na imprensa brasileira e, certamente, seria a linha adotada numa eventual ocorrência como essa.
Como fica evidente pelo tratamento dado ao caso pela imprensa francesa, o respeito ao princípio constitucional da presunção de inocência tem extraordinária importância pelos reflexos, de várias naturezas, no tratamento de uma ocorrência grave. O respeito a esse princípio não acarreta o cerceamento da liberdade de imprensa, não impede que a opinião pública seja informada e mesmo alertada quanto a possíveis riscos e, num sentido positivo, evita a antecipação de julgamentos e colocação injusta de estigmas em pessoas e famílias que, além de vitimadas por uma tragédia, passam a ser vítimas da curiosidade ou da execração pública.
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Jurista, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo