Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A prisão de José Dirceu e a crise de representação do PT

A prisão de José Dirceu na Operação Lava-Jato não foi trivial. Do ponto de vista simbólico, a segunda prisão de Dirceu – já preso graças ao Mensalão – cria um elo entre os dois escândalos, separados por uma década. A projeção do Mensalão sobre o Petrolão fere os ouvidos, cutuca feridas mal cicatrizadas. Deixa em frangalhos a narrativa política que alçou Dilma Rousseff ao Planalto, expõe de forma cruel a decadência do PT no poder. Amplifica a busca por raízes da crise de 2015.

Dilma foi ungida herdeira de Lula como efeito direto do Mensalão. De ministra das Minas e Energia para a Casa Civil, Dilma trazia uma reputação ilibada, a fama de eficiência gerencial e um passado guerreiro capazes de desfraldar uma luta sem tréguas contra a corrupção. O governo Lula foi ressignificado através da imagem de Dilma. Doravante, o Mensalão seria associado a vícios sistêmicos e endêmicos da Nova República. Seus desdobramentos, varridos para debaixo do tapete.

Alimentado pela popularidade de Lula e pelo marketing de “mãe do PAC”, o PT venceu facilmente o PSDB nas eleições de 2010, sem que o Mensalão respingasse na sua nova figura de proa. O PIB resplandecia após a crise econômica mundial de 2008: 7,5% de crescimento. Dilma reunia, aos olhos do eleitorado, virtudes de Lula e a esperança de um futuro próspero e seguro condizente com BRICS. No espelho retrovisor da Lava Jato, o 1º mandato Dilma e o último Lula envelhecem a olhos vistos.

Rachaduras na narrativa Dilma apareceram em 2013. O governo anunciou gastos bilionários para a Copa do Mundo vindoura e demandou sacrifícios da população em prol da imagem internacional do país. Integrante do Comitê Organizador Local, Ronaldo expôs de forma clara uma das contradições do megaevento: a Copa do Mundo não se faz com hospitais . Por sua vez, milhões de brasileiros ocuparam as ruas das capitais exigindo serviços públicos de qualidade (“padrão Fifa”) às vésperas do evento-teste Copa das Confederações. A popularidade de Dilma despencou de níveis recordes para menos de 40% do eleitorado e nunca mais se recuperou.

No ano seguinte, a presidenta seria vaiada na abertura e no encerramento da Copa do Mundo. 2014 marcou a primeira inflexão da narrativa Dilma Rousseff no poder. A presença da presidenta nas ruas se reduziu, à medida que aumentavam manifestações de indignação e repúdio a políticas do governo federal. O marketing do PT, doravante, lutaria para manter o apoio da maior minoria. O PT intensificou o elemento pragmático gerencial da persona Dilma. A estratégia ocupou as mídias tradicionais do marketing eleitoral (inserções na TV e rádio), mas se concentrou nas redes sociais, especialmente no Twitter e no Facebook. Caracterizadas pela interação com os usuários, redes sociais forneceram espaço para trazer a presidenta desconectada das ruas para perto do dia-a-dia dos eleitores.

A abordagem transmídia foi apropriada pela oposição

Ao mesmo tempo em que Dilma era vendida como uma gerente eficaz, a mensagem do PT se multiplicava pelos compartilhamentos, intensificada por discussões e pela criação de narrativas online em torno da propaganda partidária. Enquanto o marketing do PT promovia a desconstrução simultânea de Marina Silva (PSB) e Aécio Neves (PSDB) – imagens de mesas vazias, empregos perdidos, alusões à corrupção e uso de entorpecentes – Dilma pregava “mudar mais” para bolhas ideológicas viralizadas. Tweets da presidenta se entremearam com a popularidade de perfis de Facebook (como Dilma Bolada) e eventos públicos para nichos específicos do eleitorado (a inauguração do Templo de Salomão da Igreja Universal do Reino de Deus, controladora de um partido da base aliada). A estratégia intensificou a mensagem do partido para os já convertidos e multiplicou o efeito aparente de políticas controversas (PAC 2, Programa Mais Médicos, Pronatec). A geração de camadas de informação transmídia substituía o carisma transbordante de Lula.

Dilma obteve quase 55 milhões de votos (aproximadamente 38% do eleitorado) em 26 de outubro. Sua vitória apertada pareceu consagrar o marketing viral e virtual. Esse triunfo se mostrou efêmero. O PT pretendeu pavimentar um longo período de protagonismo na política nacional ao converter Dilma em continuação de Lula. Mas na passagem do carisma para o pragmatismo gerencial, parte do conteúdo do partido se perdeu. A ruptura com o padrão de comunicação pré-Mensalão e a mudança de referência (do carisma para as estatísticas) confundiu os signos do partido. A confusão foi amplificada pelo questionamento público (desde 2013) das estatísticas governamentais. Qual era a mensagem que estava em curso, a quem ela se dirigia, fazia sentido? Além de um problema de comunicação, cabia definir quem a presidenta e o PT pretendiam representar num segundo mandato. O marketing do PT se desidratou rapidamente na maré de más notícias que se tornaram perturbadoramente comuns desde novembro de 2014.

Contra o pano de fundo do marketing “muda mais”, o duro ajuste simbolizado pelo ministro da Fazenda Joaquim Levy foi recebido pela sociedade brasileira como uma punição. O anúncio do ajuste equivaleu a uma reversão brutal de expectativas. A olho nu, o novo governo adotava agendas-chave das duas candidaturas oposicionistas que seu marketing tentou destruir (através de velhos fantasmas – desemprego, recessão, inflação – que o ajuste pareceu reavivar). 2015 redefiniu o segundo turno de 2014 como monólogo entre ajustes mediado pelo marketing eleitoral. Nas mídias tradicionais, as críticas se acumularam, incessantes. A abordagem transmídia bem-sucedida na eleição foi apropriada pela oposição para manifestar repúdio ao novo-velho governo nas ruas e na rede. A ruptura comunicacional se tornava uma crise de representação.

Um governo operando no volume morto

A legitimidade conferida nas urnas foi (sub)traída em questão de semanas. A sensação de desalento alimentou investigações em curso. Subitamente, órgãos cujos integrantes passaram ao largo do crivo das urnas – o Supremo Tribunal Federal, o Ministério Público e a Polícia Federal – se tornaram fiadores das expectativas de um novo mandato presidencial acossado por sua base no Congresso. A tentativa do governo fazer o PMDB pagar os ônus do ajuste redundou na desagregação da base e em hostilidade aberta entre o Congresso e o Planalto. Além de escaramuças com o novo presidente da Câmara, o desafeto Eduardo Cunha (PMDB), e constrangimentos além-fronteiras na Comissão de Relações Exteriores do Senado (comandada pelo candidato a vice de Aécio em 2014), Dilma não conseguiu se fazer entender pelo conglomerado de partidos que a reconduziu ao Planalto.

Apenas no primeiro semestre, duas grandes derrotas políticos viriam no Congresso, associadas com graves problemas de comunicação. Primeiro, a reforma política. Proposta por Dilma no auge das manifestações de 2013, a medida foi engavetada e sumiu do marketing eleitoral. O PMDB a recuperou em 2015, para constranger o novo governo e abrir flancos na “governabilidade”. Dilma se viu na ingrata posição de rejeitar uma proposta de seu próprio punho, apropriada pelo partido mais importante de sua base (representado na chapa presidencial pelo vice Michel Temer).

Na votação da redução da maioridade penal, 162 deputados da oposição foram favoráveis à controversa proposta de Cunha. A aprovação viria, graças a 161 votos oriundos dos partidos integrantes do governo Dilma. O marketing da presidenta – que se dizia contrária à redução nas redes sociais – era desmentido por práticas de seus correligionários. Todos partidos apoiadores do governo forneceram votos pró-redução, inclusive o PT. A desagregação da base era insofismável. O contraste entre o marketing destrutivo e a ausência de uma agenda positiva teve efeitos políticos traumáticos.

O vazio propositivo coloca presidenta e PT na retaguarda, adotando postura defensiva diante da agenda oposicionista mais explícita. A cada vez que a oposição é acusada de flertar com o “golpismo”, o discurso de Dilma cai num silêncio de alternativas. Já afastada dos holofotes, Dilma assistiu de camarote a uma escalada de manifestações de rua antigovernistas e antipetistas (às vezes comportando inusitados clamores por uma ditadura militar). Aparições da presidenta na TV viraram mote para manifestações de repúdio massivo nas capitais – os “panelaços”, associados pelo PT ao revanchismo da burguesia. A popularidade da candidata recém-eleita despencou para menos de 10% do eleitorado.

No encerramento prematuro da narrativa Dilma, o PT acusou o golpe. Movimentações pela volta de Lula foram simultâneas à inauguração do novo governo. O retorno ao carisma após anos de pragmatismo tecnocrático reforçou a percepção de que Dilma adotara a agenda de Aécio, camuflada pelo marketing eleitoral. O gargalo comunicacional do PT se tornou um abismo, à medida que o PT se exasperava para descolar Lula de sua herdeira política. Aludindo à seca em São Paulo, o ex-presidente (alvo de acusações correlatas à Lava Jato) caracterizou Dilma II como governo operando no volume morto.

A imagem de Dilma perdeu o reflexo no espelho dos anseios

A estratégia de marketing da eleição de 2014 rateia na sua própria insuficiência. O partido que declarou uma guerra sem tréguas à corrupção sucumbe à corrosão das investigações em suas fileiras. A exaustão política atingiu o paroxismo em 1º de Maio de 2015, dia Internacional do Trabalho. A presidenta do Partido dos Trabalhadores limitou sua voz aos 140 caracteres do Twitter. Nas entrelinhas, os panelaços. Durma-se com um barulho desses. Dantes inocente incorrigível na propaganda petista, José Dirceu foi abandonado à própria sorte. O constrangimento do PT com Dirceu cria mais ruídos na narrativa do partido através da década marcada pelo Mensalão e o Petrolão. A dissonância política amplifica cacofonias nas hostes petistas, já sangradas por cisões pós-Real, Carta ao Povo Brasileiro e as governabilidades de Lula e Dilma.

O que havia sido um círculo concêntrico de autoafirmação viral referendado por uma audiência favorável se tornou uma dura manifestação de autocrítica. Esse silêncio valeu por mil manifestos. O último deles foi lançado às vésperas do V Congresso do PT (que celebrou 35 anos do partido). O manifesto “o PT não matará o Petismo” – construção coletiva encabeçada, dentre outros, pelo autor de Marx Selvagem, Jean Tible (Unicamp) – contém uma recusa clara em abrir mão de conteúdo moral.

Ao declarar a morte do PT-realmente-existente (vítima da governabilidade), os signatários reafirmam a atualidade do petismo: a possibilidade de transformação (do) presente e de ressignificar o partido através de movimentos sociais. A contraposição PT/petismo serve de mote para anunciar uma guinada moral para o presente. O marketing eleitoral acusa perda de vitalidade política da esquerda. Em contraste com quimeras digitais, o manifesto investe em agendas que saíram do radar dilmista (como os direitos LGBT).

Os jovens refuseniks oferecem uma alternativa à desgastada narrativa lulista (a transformação social em grande escala como corolário da governabilidade da Carta ao Povo Brasileiro). Acenam com uma transformação valorativa que se prove resiliente à corrosão do consumo como motor de ascensão de novas classes políticas – alquimia dúbia que ensejou dantes euforia e doravante, lamentos. Sinais de vitalidade significativos na atrofia do presente “Nous Sommes Levy”. Mas a proposta contém suas próprias ambivalências no trato com o incômodo legado do PT. Ao mesmo tempo que o rei está morto, houve menos disposição para engajar e responsabilizar responsáveis pelo melancólico cul-de-sac. A reflexão sobre a governabilidade foi colocada de lado pela disposição de agregar valor (via novas agendas), tirando o foco da crise que implodiu o PT.

A nova prisão de José Dirceu traz à baila incômodas lembranças de 2005. A recuperação de agendas obliteradas pelo marketing repolitiza o PT. Pode servir de ponto de partida para uma reflexão profunda. Acompanhadas de silêncio sobre responsabilidades dos protagonistas dos descaminhos, novidades podem servir como imerecido indulto à governabilidade finada. O manifesto não tem respostas para o presente contraditório, mas oferece a luta pelo futuro. Diante do ostracismo partidário ao qual essas teses foram legadas, os proponentes teimam: o partido não foi (de todo) devorado pela esfinge Dirceu. A crise de legitimidade oriunda de mudanças no padrão comunicacional, porém, não será resolvida por decreto. Rompido o bloqueio do marketing, a gramática da governabilidade não se sustenta.

O manifesto acena com a possibilidade de agência política para além de afinidades momentâneas. Diante da desconexão com um tempo perdido e suas contradições, mostra disposição para refletir sobre o presente que se recusa a desaparecer em amnésias. O grito normativo traz alento diante de reações à crise, que revelam o peso de escolhas anteriores. Em 6 de agosto de 2015, o PT buscou se reconectar a um eleitorado que rejeitava Dilma em proporções recordes (71%). Ao trazer a linguagem das redes sociais para a TV – sem mea culpas, investindo no “golpismo”, negando a crise –, o partido não teve o que dizer. O ruído de panelas mais vazias que cheias bloqueava a mensagem partidária. A imagem de Dilma (em aparição fugaz na mensagem de seu partido) já perdera seu reflexo no espelho dos anseios. Nas dores da transição, a pior corrupção é a das expectativas.

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Carlos Frederico Pereira da Silva Gama é professor do magistério superior e Ariane Gervásio é jornalista