O artigo 220 do capítulo sobre a Comunicação Social de nossa Constituição não poderia ser mais claro: ‘É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística’. O que não está totalmente esclarecido é de onde parte a censura. Quem são os censores?
Não há dúvida de que a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa têm suas histórias vinculadas à chamada liberdade negativa (negative freedom), isto é, à liberdade de indivíduos ou grupos de indivíduos de expressar suas opiniões sem interferência externa. Na sua origem essas liberdades se referiam à ausência de restrições exercidas pelo poder absolutista, autoritário, não-democrático. Foi contra esse poder que se insurgiram alguns dos clássicos do liberalismo que continuam até hoje sendo invocados quando o tema reaparece na agenda pública, sobretudo John Milton (1608-1674) e John Stuart Mill (1806-1873).
Muita coisa mudou desde os tempos em que os indivíduos se reuniam face a face nas suas aldeias e pequenas comunidades para discutir e decidir sobre seus problemas comuns e em que ‘imprensa’ (press) significava o direito individual de imprimir. O desenvolvimento tecnológico e a conformação dos sistemas econômicos fizeram com que as sociedades se tornassem mais complexas e grande parte da comunicação humana fosse, aos poucos, sendo intermediada por tecnologias (mídias) e instituições (empresas privadas) que estão longe de ser meros condutores neutros através dos quais a informação circula livremente.
Hoje, essas empresas de mídia – que pretendem representar a cada um de nós – se constituem, elas próprias, em importantes e poderosos atores, tanto econômicos quanto políticos, mas, sobretudo, como atores determinantes na construção da opinião pública em todo o mundo.
O exemplo europeu
Não é segredo para ninguém que a ‘indústria das comunicações’, apesar de crises financeiras localizadas, se transformou em um dos principais negócios das últimas décadas. E exemplo de concentração da propriedade no mundo globalizado (‘sinergia’, na linguagem dos CEOs), reduzida a alguns megagrupos privados que tendem cada vez mais a controlar o que vemos, ouvimos e lemos. Basta olhar ao redor de nós mesmos: uns poucos grupos familiares-empresariais, alguns já associados a megagrupos multinacionais, praticamente controlam as comunicações no Brasil.
Pois bem. Será que essa nova realidade histórica altera a concepção de ‘liberdade negativa’ em relação apenas ao poder do Estado, referida às liberdades de expressão e de imprensa, que teve sua origem nas sociedades européias do século 17? Será que a concentração da propriedade privada dos meios de comunicação tem alguma interferência na liberdade de expressão, na pluralidade de fontes e na diversidade de conteúdos, pilares da democracia representativa liberal?
Em vários países da União Européia a resposta é definitivamente ‘sim’. Na Alemanha, na Espanha e em Portugal, as Constituições nacionais, além de impedir a censura estatal, trazem também provisões para que o Estado a) garanta a existência de uma imprensa livre e diversa; ou b) impeça a concentração da propriedade; ou c) garanta acesso a todos os grupos sociais e políticos e assegure a diversidade na mídia.
Evidência ignorada
Por outro lado, desde a década de 1970, o chamado PICA-Index (Press Independence and Critical Ability) incluiu entre seus indicadores as ‘restrições econômicas’ para a aferição da liberdade de imprensa. Por ‘restrições econômicas’ são entendidas as conseqüências da concentração da propriedade ou de problemas que decorram da instabilidade econômica das empresas jornalísticas. O próprio Press Freedom Survey, publicado anualmente pela Freedom House americana, trabalha com uma definição de liberdade de imprensa que inclui variáveis econômicas. Vale dizer, considera que restrições à liberdade de imprensa podem decorrer de outros fatores que não exclusivamente a interferência do Estado.
Enquanto isso, entre nós, ‘o mercado’ continua absoluto como única forma admitida pela indústria das comunicações como critério e medida das liberdades de expressão e de imprensa. Qualquer alusão à necessidade de algum tipo de regulação democrática do setor, feita por quem quer que seja, será liminarmente estigmatizada como autoritarismo, stalinismo, totalitarismo.
Quase 20 anos depois do fim da ditadura, em plena democracia, continuamos a ignorar, no Brasil, a evidência de que, junto com outras atividades anteriormente consideradas como exclusivas do Estado, a censura também está sendo privatizada.
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Professor aposentado da Universidade de Brasília, fundador e primeiro coordenador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da UnB, autor de Mídia: teoria e política (Editora Fundação Perseu Abramo)