Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A professora e os crimes espetacularizados

‘Quando a história é interessante, a verdade não é importante’ Tom Zé (compositor e cantor)

Que atitude deve adotar uma professora perante o aluno diante do crime transformado em espetáculo? Como a professora pode contribuir para promover o pensamento crítico, problematizador, diante dos fatos reais e ficcionados? Que fazer para não se deixar levar pelo histerismo coletivo, como no caso do homicídio da menina Isabella?

Concebo a professora como a intelectual da sua escola e da comunidade. Ela deve evitar o irracionalismo e a barbárie, começando por sua própria escola, educando as novas gerações para superar os vícios próprios da compulsão às opiniões colhidas em vez do conhecimento elaborado. Em vez de deixar os alunos e a comunidade reféns dos noticiários e formadores de opinião, a função docente deve orientar os aprendizes no sentido da problematização, do exercício da dúvida, da construção de um pensamento crítico, reflexivo e aberto.

Crimes que viraram espetáculo e provocaram histerismo coletivo não são novidade na nossa história real e ficcionada. O filme Acusação, por exemplo, ainda representa um alerta para a possibilidade de virar realidade, repetidas vezes. Na década de 1980, nos EUA, membros de uma família, proprietária de uma escola infantil, são acusados de abuso contra crianças.

Condenação antecipada

A imprensa mostra-se interessada, insufla a população, fazendo da notícia um espetáculo diário sobre o caso e antecipando a condenação dos donos e professores da escola. A população é tomada de fúria histérica, e culpa imediatamente os suspeitos do crime de pedofilia.

Apoiada nas supostas provas levantadas por uma falsa psicóloga contra os que trabalhavam na escola, a promotora manda alguns para a cadeia. Inconformado, um advogado vê que se trata de um caso de histeria coletiva e, sete anos depois, consegue inocentar todos os acusados, mas vidas já tinham sido arruinadas.

Essa história virou realidade em 1994, na Escola Base, localizada no bairro da Aclimação, em São Paulo.Tudo começou quando duas mães de alunos dessa escola queixaram-se na delegacia do bairro do Cambuci de que seus filhos de 4 e 5 anos estavam sendo molestados sexualmente na escola e eram obrigados a participar de orgias num motel, onde eram fotografados e filmados.

O delegado ‘x’ não só acolheu a denúncia como alardeou junto à imprensa antecipando uma condenação dos donos da Escola Base, os quais, só no final do inquérito, dez anos depois, também foram declarados inocentes.

Problematizar a notícia

Tanto na ficção, relatada no filme, como na realidade da Escola Base, os donos destas escolas sofreram linchamento moral: tiveram que fechar as escolas; os funcionários perderam os empregos; sofreram grave estresse, cujo efeito foi o surgimento de doenças: depressão, fobias, patologias do coração. Também receberam ameaças por telefonemas anônimos, viviam sob tensão emocional e isolaram-se da comunidade.

A imprensa sensacionalista usava termos pesados, como ‘monstros da escola’, ‘escola de horrores’, a ‘Kombi era motel na escolinha do sexo’ etc. Um comentarista do extinto programa televisivo Aqui Agora, do SBT, chegou a pedir a pena de morte para os acusados. Inocentados, a mesma imprensa não veio a público fazer autocrítica e pedir desculpas pelo seu erro às vítimas.

Cabe à professora, como intelectual de sua escola e de sua cidade, estar preparara para ‘filtrar’ as notícias espetacularizadas e as fofocas produzidas pelas bocas malditas. Ela deve ensinar alunos e comunidade a problematizar notícias, fofocas, boatos e pré-condenações.

Um ‘terceiro ouvido’

Além de incentivar os alunos à leitura dos jornais e revistas, cabe a professora prepará-los para compreender as notícias. Os ‘analfabetos funcionais’ (pessoa que sabe ler mas não compreende) são um perigo tanto para sobrevivência dos jornais e revistas como para uma sociedade democrática e esclarecida.

A iniciativa de alguns jornais (como O Diário do Norte do Paraná, de Maringá, PR) de fazer parceria com as escolas é uma forma de prevenção. Mas que fazer para levar os leitores a melhorar a compreensão do texto? Que pode fazer a ‘boa’ imprensa para esclarecer a população, em vez de promover o irracionalismo na turba? Que podem fazer a escola e a imprensa para formar leitores mais prudentes e razoáveis?

É danoso para os cidadãos e a sociedade o ‘não pensar’ (H. Arendt), gerador de opiniões e atos impulsivos. Ainda que um caso como do assassinado da menina Isabella nos comova e nos cause raiva, precisamos manter o bom senso e a serenidade para ler, compreender e escutar com um ‘terceiro ouvido’ onde a vida deve ser reconhecida e a morte vencida com argumentos.

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Psicólogo, doutor em educação pela USP e professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM), PR