Na campanha eleitoral, impera a publicidade política. No governo, a chamada publicidade oficial. Entre uma e outra, o que temos é a semelhança, o espelhamento, a identidade absoluta.
Por meio da linguagem dos anúncios, das estratégias de convencimento para o consumo, os partidos abordam o eleitor. Depois, a mesma língua serve aos governos, que se dirigem ao cidadão publicitariamente. Num caso e no outro, a lógica da mercadoria – seja a ‘mercadoria’ um serviço público ou mesmo a imagem de um líder – se sobrepõe à lógica dos direitos e tende a substituí-la. É como se a publicidade pudesse cumprir com mais eficiência as funções da comunicação pública – ou, melhor, trata-se de saber por que a nossa cultura política terminou por acreditar, piamente, que ela cumpre melhor essas funções e, por isso, abraçou a publicidade como sua linguagem preferencial.
O que nos leva a isso?
Quando o consumo absorve a política
No fundo desse profundo deslocamento, existe a supremacia do paradigma da sociedade de consumo sobre os temas até recentemente entendidos como próprios da cidadania. Hoje, demandas relativas aos direitos se resolvem pelas relações de consumo. Basta ver como a educação ou a saúde, alguns dos nossos direitos fundamentais, são trabalhados como serviços desejáveis – mais do que devidos –, como se fossem verdadeiros objetos do desejo. Planos de saúde privados aparecem como regalias em propagandas de toda espécie, a tal ponto que dá no sujeito uma vontade incontida de quebrar a perna apenas para ser atendido por aquelas enfermeiras bonitas.
A sensação de exclusividade – de ter o que o outro não tem – reveste esse mecanismo de atração assim como reveste as campanhas de venda de carros novos ou de pares de sapato. Por incrível que pareça, o fetiche da mercadoria incide também sobre os serviços de saúde. Do mesmo modo, as escolas aparecem não como o atendimento de um direito, mas como um passaporte para quem deseja vencer na vida e chegar ao topo na frente dos competidores. Não há dúvida de que o espírito de competição impulsiona a carreira de todo mundo, mas o ponto, aqui, é que isso, o espírito de competição combinado com o fetiche da mercadoria, acaba obscurecendo completamente a dimensão dos direitos fundamentais.
Quando tratamos dos serviços públicos, os mesmos mecanismos atuam na comunicação. Nas campanhas eleitorais, escolas públicas e hospitais públicos surgem como ofertas irresistíveis cuja aura advém da mesma linguagem publicitária – o voto se converte numa espécie de moeda para ‘comprar’ aquilo que o candidato promete com um sorriso no rosto. Depois, já no governo, os políticos se fazem protagonistas, ainda que velados ou discretos, de ações que entregam ao consumidor objetos que ele deseja ardentemente. O corte da exclusividade, que no mundo do consumo mercantil é estabelecido pelo poder de compra, agora é operado pela adesão a um partido ou pelo apoio a um governo. O fetiche da mercadoria reluz igualmente, mas aqui fantasiado de causa pública.
É como publicidade que a política discursa. O ideólogo, figura central nos partidos até algumas décadas atrás, vê-se inteiramente substituído pelo ‘marqueteiro’. Não que o primeiro fosse grande coisa, não que ele fosse uma solução definitiva. Era, em muitos sentidos, um mistificador. O problema não está na morte do ideólogo, mas na substituição da lógica da política – terreno de solução dos temas da cidadania – pela lógica da mercadoria – ou do consumo. A isso, nossa cultura democrática deveria prestar mais atenção.
Ameaça à independência editorial
A linguagem publicitária também se beneficia de um fetiche – o fetiche segundo o qual ela funciona mais do que tudo, pois é o idioma aparentemente definitivo do mundo do consumo. Ela se torna, nessa medida, o objeto de desejo dos políticos. Por essa razão, a cooptação pela esfera política do discurso publicitário e de seus profissionais se firmou como tendência irreversível. Cria-se um círculo vicioso. As mesmas agências que se destacam nas campanhas eleitorais se credenciam a ganhar as contas públicas de comunicação oficial. A partir daí, elas se especializam e se capacitam ainda mais para novas campanhas eleitorais. A comunicação das campanhas eleitorais e a comunicação oficial são a mesma, estritamente a mesma comunicação. A isso, curiosamente, muitos dão o nome de comunicação pública.
Foi por esse caminho que o poder público se tornou um dos maiores anunciantes do país. Disponho aqui de um dado de alguns anos atrás, que ainda pode nos servir de ordem de grandeza, pois essa ordem que não se alterou. Estima-se que os anúncios comprados pelos governos federal, estaduais e municipais alcancem algo em torno de 7% do total investido em publicidade no Brasil. Uma reportagem assinada por Fernando Rodrigues, na Folha de S. Paulo (10/11/2003), situava o Brasil no topo de um ranking em matéria de gastos em propaganda oficial, numa comparação que incluiu países como Alemanha e Estados Unidos. De toda forma, dados numéricos aqui não importam tanto quanto o senso de proporção. É notório que o poder público é simplesmente um anunciante de peso imenso. Vivemos sob o Estado-anunciante – e as conseqüências disso nem sempre são positivas. Aliás, são nefastas.
Como já pude afirmar em outros trabalhos – entre os quais o meu livro Em Brasília, 19 horas (Editora Record, 2008) – que o Estado-anunciante é um totem da mídia nacional. Sob ele, acreditamos que é legítimo que se use dinheiro público na compra de espaço publicitário a toda hora. A argumentação que defende esse instrumento supõe que, por meio de propaganda, o Estado – e, dentro dele, o governo principalmente – cumpre a função de atender ao direito à informação. É uma argumentação falsa. O que faz a publicidade estatal, quase sempre, não é mais que falar bem de quem está no poder – e pressionar os órgãos jornalísticos.
A linguagem publicitária, para começar, é avessa ao contraditório. Não inclui a crítica e não dialoga. Ela apenas afirma as virtudes – ou, melhor dizendo, o fetiche – da sua mercadoria. Assim, mesmo quando um governo veicula campanhas de saúde pública, nada mais faz do que dizer à sociedade que ele, governo, faz muito pela saúde pública. Isso vale para as campanhas de vacinação ou para as campanhas de prevenção da Aids. Do mesmo modo, quando se mostram melhorias em estradas ou em escolas, municipais, estaduais ou federais, o que se faz é promover quem governa. As campanhas de governo são o prolongamento e a preparação das sucessivas campanhas eleitorais.
É por isso que, do meu ponto de vista, a democracia deve prescindir desse tipo de custo. Para o cidadão, interessa que as informações sobre a gestão pública lhe sejam asseguradas. A ele não interessa que recursos públicos financiem o proselitismo do partido que governa. O poder público, rigorosamente, não precisa de publicidade paga, salvo em circunstâncias excepcionais. O que vemos, no entanto, é que a propaganda oficial vem sendo praticada não para as circunstâncias excepcionais, mas como regra. E numa escala bastante elevada que, além de banalizar a atuação do Estado-anunciante, desequilibra o mercado. Aí nós temos uma distorção mais do que preocupante.
Nas cidades médias ou pequenas, os jornais e as emissoras de rádio sofrem de dependência crônica dos governos locais. Dada a sua magnitude, as verbas publicitárias do Estado-anunciante tendem corromper a imprensa. São muitos os veículos jornalísticos que não teriam como se sustentar se não fossem as verbas públicas. Isso os torna reféns das contingências dos governantes. É, de fato, uma situação muito grave, que ameaça, sim, a independência editorial desses veículos e, de modo geral, ameaça também a liberdade de imprensa.
A falácia da publicidade oficial que ‘dá uma forcinha’
Há autoridades que usam abertamente esses recursos para privilegiar empresas de comunicação de amigos, de correligionários, de familiares – quando não as suas próprias. Nesses casos, a promiscuidade é total. De outro lado, há aqueles que advogam que a verba de publicidade pode ser empregada para promover o que chamam de políticas públicas para fomentar o que chamam de ‘diversidade’ da comunicação social.
Outra vez, o raciocínio não se sustenta. Se tivesse mesmo que comprar espaços publicitários para comunicar o que quer que fosse aos cidadãos, o governo deveria promover a compra de espaços segundo critérios estritamente técnicos, jamais políticos. Assim como compra automóveis ou uniformes, por meio de licitação – o governo, se tivesse mesmo que anunciar, repita-se – deveria comprar espaços nos veículos que de fato se dirijam aos públicos aos quais ele precisa passar aquela mensagem. Isso e apenas isso.
A história de ‘jogar’ verba pública de publicidade em jornais ou revistas ‘alternativas’ para ‘dar uma força’ é tão falaciosa quanto aquela de ajudar os parentes. E eticamente é tão grave quanto. Não é lícito comprar espaço publicitário num veículo ineficaz sob o argumento de que ele, por ser ‘alternativo’, precisa de uma ‘forcinha’, pois isso traria diversidade à comunicação social. Pela mesma razão que não seria lícito comprar aparelhos de ar condicionado de qualidade inferior para dar sustentação a uma fábrica minoritária no mercado.
Se de fato existe, no governo – em âmbito federal, municipal ou estadual –, o propósito de fortalecer a pluralidade entre os meios de comunicação, o instrumento de política pública legítimo seriam, por exemplo, linhas de financiamento específicas. Nada a ver com publicidade. As linhas de financiamento seriam abertas aos diversos órgãos que atendessem aos requisitos estabelecidos pelo poder público e esses disputariam democraticamente os recursos disponíveis. Sem ter que veicular anúncio algum.
No mais, como escrevi no livro Em Brasília, 19 horas, ‘a publicidade é recebida como um apelo emocional para o consumo, para a adesão política, para a conversão religiosa e, portanto, toda publicidade de governo não tem como deixar de ser, no fim da linha, um artifício para a promoção das causas abraçadas pelo governante, quando não da própria pessoa do governante’. Não há como tergiversar. Toda propaganda de governo, mesmo quando declarada de utilidade pública, só faz sentido publicitário se induzir a opinião pública a avaliar favoravelmente o governo. Não é legítimo que se faça isso com dinheiro público.
Breve conclusão
Até há bem pouco tempo, governar era sinônimo de fazer obras. Os governantes se gabavam de ser ‘tocadores de obras’ e um diploma de engenheiro lhes caía bem. Eles gostavam de aparecer com capacetes de capatazes em meio aos operários nos canteiros de obras. Mais recentemente, governar vai se tornando sinônimo de fazer propaganda de obras, sejam elas grandes, pequenas ou simplesmente inexistentes. Há aqui um paralelo, que já destaquei em outros textos, e que precisa ser sublinhado. Antes, a corrupção caminhava preferencialmente pelos tentáculos das empreiteiras. Depois, ela passou a se mover também, alternativamente, pelas agências de propaganda. A promiscuidade é a mesma – mudou apenas o canal.
Infelizmente, não temos dedicado a esse tema a atenção que ele merece.
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Jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP