Na semana passada, o Supremo deu fim a uma jabuticaba. Em voto de mais de cem páginas, a ministra Cármen Lúcia decidiu não ser mais necessária a autorização prévia do biografado, das pessoas relacionadas a ele ou de seus familiares para que se escreva uma biografia sobre a pessoa pública. Os demais ministros acompanharam o voto.
Termina assim um capítulo triste da legislação do país, que durou mais de dez anos e levou ao recolhimento de livros e à interrupção de obras, incluindo muitos documentários. Para ter uma ideia dos efeitos nocivos da proibição, em outros países a regra é a da pluralidade. Personalidades controversas são intensamente biografadas. O “rei” do pop, Michael Jackson, tem mais de cem biografias (na Amazon existe até uma seção chamada “biografias de Michael Jackson”). Steve Jobs tem mais de 15. Evita Péron, mais de 20. Nicolas Sarkozy, ao menos sete. E assim por diante.
Faz sentido. A vida humana é um fenômeno complexo, ainda mais por se inserir na história. A única forma de alcançar objetividade é a existência de vários pontos de vista. Quanto mais relatos sobre a trajetória de uma pessoa, maior seu entendimento. E menor a repercussão de alegações infundadas, que se diluem em meio a trabalhos mais bem pesquisados e formulados.
Mas nem tudo são flores. A decisão do Supremo não resolveu totalmente a questão. É claro que o direito à realização de biografias não é absoluto. Deve ser balanceado com outros direitos, incluindo o direito à privacidade e à reputação. A questão que ficou em aberto é qual deve ser o remédio no caso de violação desses direitos.
Os ministros do Supremo mostraram ter posições conflitantes sobre o tema. Uma corrente entende que o remédio deve ser exclusivamente a indenização posterior no caso de violação a direitos. Jamais a suspensão ou o recolhimento da obra. A segunda acha que o remédio deve ir além. Deve permitir a retificação forçada ou até seu recolhimento.
A ministra Cármen Lúcia tentou resolver o dilema em seu voto, posicionando-se a favor da primeira posição. Mas encontrou resistência e retirou esse ponto. Com isso, permanece uma lacuna sobre o tema das biografias, capaz de gerar novas disputas e incertezas.
Para lidar com ela, um bom caminho é lembrar a Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil faz parte. Ela proíbe qualquer forma de censura prévia e diz que o remédio para violação de direitos deve ser apenas a aplicação de “responsabilidades ulteriores”, ou seja, nada de recolher obras. Com isso reforça a primeira posição que ficou de fora da decisão do STF. Como a Convenção tem força supralegal, ajuda também a evitar que o Congresso adote leis conflitantes com ela.
Não há dúvidas de que tivemos um enorme avanço. Mas a novela das biografias ainda poderá ter novos capítulos.
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Ronaldo Lemos é advogado e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro