Uma das lições perenes do inesquecível João Rath é que não existe nada mais parecido com um jornalista do que um policial, e vice-versa.
É uma chave para entender o que acontece na mídia. Experimentem. Se possível sem preconceito contra a mídia, hem?
Munidos da sabedoria do Rath, podemos comodamente comparar a idéia de propor a criação de um Conselho Federal de Jornalismo com a instituição de corregedorias.
Elas se tornaram aparentemente necessárias, já que na polícia o tempo todo alguém sai da linha, ou muda de lado e se esquece de pedir demissão, mas não resolvem. Preciso tomar o tempo do leitor argumentando por quê? E, já que me dão licença, digo que acreditar demasiado em corregedorias só pode piorar as coisas. Porque consome tempo e recursos que deveriam ser concentrados numa formação adequada – de público leitor, ouvinte, telespectador, e de profissionais –, essa, sim, capaz de dar algum alento.
Direitos contraditórios
A iniciativa do ministro Ricardo Berzoini não é um raio em céu azul. A proposta é antiga e nasce de uma preocupação que faz sentido (o que não faz sentido é a resposta ao problema). Berzoini não está, no caso, preocupado em defender a liberdade de expressão, e sim em se defender do abuso dela. Como o governo Lula já se embrulhou bastante nesse terreno, com a história do correspondente do New York Times Larry Rother, muita gente boa fica de orelha em pé.
Advogados constitucionalistas e professores da disciplina deveriam explicar incansavelmente à opinião pública o conteúdo do Capítulo I (‘Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos’) do Título II (‘Dos Direitos e Garantias Fundamentais’) da Constituição de 1988. O texto é facilmente encontrável, mas ele precisa ser interpretado com sabedoria. O leigo não só desconhece o alcance de muita coisa escrita na lei como freqüentemente se engana a respeito do que pensa ter compreendido.
Os mestres mostrariam que o direito à liberdade de expressão é amplamente assegurado, mas não de forma irrestrita. Isso está escrito com todas as palavras na Constituição. O anonimato, por exemplo, é proibido. Ninguém pode, digamos, realizar uma emissão radiofônica sem se identificar. Porque o espaço por onde se propagam as ondas de rádio é público, objeto de concessão.
Deveriam destacar que, quando se diz serem ‘invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas’, há limitação implícita à liberdade de imprensa. É um conflito entre direitos coletivos e direitos individuais que, dentro da lógica constitucional, cabe à Justiça resolver em última instância.
Em outras palavras, há contradição entre liberdades públicas e direitos individuais. Contradição não quer dizer ‘ou, ou’, como se insiste em pensar no Brasil – significando que a afirmação de um pólo liquida o outro –, mas ‘e’. Os dois pólos convivem em conflito constante. Compreender isso seria um grande avanço para a civilização brasileira.
Banhados pela sabedoria dos doutores, os jornalistas, parte da opinião pública, entenderiam melhor as balizas legais (e éticas, cívicas, etc.) que delimitam sua atividade. Entender não de orelhada, mas de modo a exercer sua atividade com mais discernimento.
Currais municipais
Não creio que seja bom caminho criar uma agência que regule o trabalho jornalístico. Este Observatório faz mais para melhorar os padrões do que faria um agência. Dói mais. Não vem de cima para baixo. Não dá aos criticados a aura de rebeldes perseguidos pelo oficialismo.
O que cumpre regular e fiscalizar adequadamente é a propriedade dos meios de comunicação e seu uso. Foi o tema do programa do Observatório da Imprensa na TV, na terça-feira, 3/8. Tão importante que deveria talvez ser rubrica permanente deste OI na internet (não é que faltem rubricas…).
Mas os participantes do programa – Alberto Dines, Artur da Távola, Roberto Müller, o deputado Orlando Fantazzini e o pesquisador Venício Artur de Lima –, que deram todos contribuições excelentes, esqueceram-se dos municípios. Abordaram a relação espúria de senadores e deputados com meios de comunicação, mas, em ano de eleição municipais, deixaram de mencionar os esquemas locais, que têm mais poder relativo sobre o eleitorado do que os grandes e médios meios de comunicação.
Valerá a pena voltar ao tema.
Mais embaixo é mais embaixo
O jornalista Sérgio Gomes, da empresa Oboré, de São Paulo, dá uma volta no parafuso. Chama a atenção para situações ainda mais cruéis, as das rádios comunitárias urbanas que, por uma série de impedimentos legais, acabam financeiramente nas mãos de traficantes, grupos religiosos ou políticos endinheirados (para os padrões desses lugares).
O estatuto das rádio comunitárias no município de São Paulo será redefinido por lei proposta conjuntamente pelos vereadores Carlos Neder, do PT, e Ricardo Montoro, do PSDB (Projeto de Lei 145/01). Por enquanto, há na Câmara Municipal unanimidade a respeito do projeto.
Sérgio Gomes fala também de uma iniciativa importante que a mídia está deixando passar em brancas nuvens – a da criação de rádios-escolas em todas as escolas da capital paulista. A Prefeitura chama esse programa de Educom.Rádio. Das 474 escolas do município, 272 já estão equipadas com sistemas de rádio que, durante o fim de semana, transmitem para a vizinhança.
É possível que iniciativas desse tipo sejam a semente de um amplo processo educativo, de baixo para cima, capaz de formar um novo tipo de cidadão usuário da mídia. Se a mídia entrar no currículo escolar, os próprios meios de comunicação serão obrigados a rever seus processos.
Leonardo Sciascia (1921-1989) disse certa vez (entrevista a Marcelle Padovani publicada no livro La Sicilia come metafora, de 1979), coberto de razão:
‘Afirmo que não se chegará nunca a nada de perfeito, de justo e de efetivamente livre em matéria de organização política e social, mas que cumpre viver e lutar como se estivéssemos convencidos de consegui-lo.’