Nesta fase de ócio criativo, outro dia, folheando uma das obras de Autran Dourado, dei com os olhos no trechinho que tratava da necessidade de se ter paciência, saber esperar, sobretudo num país hebdomadário como o nosso, que muda de moda toda semana e tem memória curta. Por incrível que pareça, pensei, talvez aí, neste ‘pequeno frasco’, estejam apontadas algumas soluções que mestres do direito procuram para a reduzida eficiência das normas jurídicas no sentido de promover mudanças no comportamento dos homens. Segundo eles, tradicionalmente os países latino-americanos, e notadamente o Brasil, são muito céticos a respeito do poder das leis que tentam este tipo de mudança. Com todo o respeito ao grande escritor e aos experts da área jurídica com os quais conversei, não satisfeito, fui em busca de outros autores. Localizei Henri Capitant que, citado por José Leão, garante: ‘Se a lei é contrária ao costume, ela é inútil, e se ela é conforme o costume, é redundante’. Devorei bovinamente (como aconselha Rubem Alves) o livrinho escrito pelo professor da Sorbonne Jean Cruet, A vida do direito e a inutilidade das leis. Pelo título não é preciso dizer muito sobre o que pensa o autor.
Repentinamente, durante minhas buscas me vi envolvido com lembranças saborosas da seção Tostines, do Severiano, questionando: as leis nos regulam ou nós regulamos as leis? Eis que por encanto clamou lá no fundo um Macunaíma pulsante: somos um povo em formação, cultura plural, vivemos uma realidade que se faz a cada momento. Não esqueci a voz da experiência: a resposta está nos processos que são construídos coletivamente e não em portarias ocasionais. Então, quousque tandem? Até quando, afinal? Até quando vão abusar de nossa paciência?
Enfadonha, não pela importância do tema, mas sim por determinadas abordagens recentes, uma das questões que têm ‘torrado’ a paciência é a polêmica pela qual o profissional no exercício das atividades de assessoria de imprensa é questionado de praticar realmente o jornalismo ou ser um invasor da ‘seara’ de outros profissionais. Alguns utilizam os exemplos a serem seguidos de outros países para justificar especulações, com destaque para o licenciamento dos sindicatos, procedimento adotado em Portugal [ver remissões abaixo].
Olhares e competências
São reconhecidamente importantes as muitas experiências de países da Europa e dos EUA. Estão bem relatadas por Chaparro, Amaral, Moutinho, Sousa e Duarte (2003, p. 33-99). Destacam que apesar de convergentes em muitas etapas, são profissões distintas, estabelecidas a partir de conquistas específicas em cada um desses países. Têm suas idiossincrasias e dilemas. Assim como no Brasil. Um exemplo tupiniquim interessante está na ampla pesquisa desenvolvida em segmentos profissionais e organizacionais, inclusive, entidades representativas das relações públicas, durante dois anos, por Margarida Kunsh (1997, p.73-103). Questões como ‘a polêmica em torno do termo ‘Relações Públicas’’, ‘a invasão da área de RP pelo Marketing’ (aí sim, um foco interessante) e se ‘a regulamentação profissional foi prematura ou não?’ são respondidas e tratadas conscientemente. Um dos destaques é justamente a pergunta: que profissionais atuam em relações públicas e em assessoria de imprensa? A maioria não titubeou: ‘No dia-a-dia, não se estabelece diferença entre as pessoas formadas em relações públicas e jornalismo’ e ‘elas devem trabalhar de forma integrada, o que parece ser o melhor caminho’.
No caso do Brasil, é fundamental, para emitir seriamente qualquer juízo de valor, compreender as especificidades que envolvem a história e a evolução dos aspectos legais e éticos das áreas. Jornalismo e relações públicas estão entrelaçados desde os seus primórdios. Pioneiros no batente e nos estudos como Gaudêncio Torquato, Carlos Chaparro, Wilson Bueno e Jaurês Palma, por exemplo, responsáveis, ainda, pela formação de muita gente competente em atuação, têm obras de referência interessantes e bem esclarecedoras que perpassam três décadas. Aliás, a literatura nas áreas de assessoria de imprensa e de comunicação está definitivamente incorporada aos projetos das principais editoras. Ganhou espaço também nas melhores livrarias do país. E alguns dos autores, jornalistas e RPs, são hoje reconhecidamente acompanhados por uma legião de leitores pelos mais remotos recantos. Ao consultá-la conscientemente, evitam-se confusões além daquelas que têm alimentado picuinhas há anos, infelizmente entre os próprios profissionais. E, assim, definem-se parâmetros para reflexões pertinentes.
Por exemplo, a de que diante de estruturas cada vez mais complexas e que apontam claramente para perspectivas com convergência de olhares e competências, basta preservar as identidades, atribuições e responsabilidades. Aliás, apresentadas com muita clareza no manual de Assessoria de Comunicação da Fenaj, desde 94 (vem aí a quarta edição revista e atualizada). Publicação que é fruto, em parte, dos posicionamentos conscientes de Audálio Dantas (Fenaj) e Vera Giagrande (Conferp). Sempre ‘antenados’, perceberam isso lá nos anos 80. Um belo exemplo de harmonia e respeito profissional, além de compromisso ético com suas categorias. Que deveria ser retomado pelos dirigentes atuais.
Estruturas do passado
Outro posicionamento interessante é o do jornalista e relações-públicas Jorge Duarte (2003, p. 99), ao afirmar que no mercado que se consolida neste início de século passam a existir três tipos de campos de atuação para alguém com formação em Jornalismo.
O tradicional nas redações e outros dois no grande campo da comunicação institucional: o especialista que realiza assessoramento de imprensa, produção de publicações ou conteúdo na Internet, e o gestor, com atuação mais política e estratégica, que utiliza a comunicação como insumo na tomada de decisões, ajudando a organização ou o assessorado a definir rumos e ações. Segundo Duarte, não há trabalho isolado, mas uma integração natural que envolve visões institucionais e mercadológicas múltiplas para se atingir uma comunicação eficiente.
Numa realidade em que as grandes empresas do ramo jornalístico fecharam algo em torno de 10 mil vagas desde o começo dos anos 90, o segmento de assessoria torna-se, naturalmente, porta de entrada de recém-formados e espaço de oportunidades para os que pressentem a partir das redações, o amadurecimento de posturas por parte de dirigentes e autoridades e a possibilidade de avanço de projetos e políticas de Comunicação em organizações não jornalísticas. Basta consultar qualquer mailing para identificar o leque de profissionais sérios e competentes, hoje em exercício em assessorias, jornalistas e relações-públicas, respeitando-se mutuamente.
No caso dos novatos, estruturam-se incubadoras nas boas universidades, permitindo experiências conjuntas entre habilitações, integração com os mercados, mesclam-se os currículos e ampliam-se os cursos de especialização com denominações que variam de Assessoria de Imprensa a Comunicação Empresarial ou Integrada. Para um crescente número de estudantes, as estruturas tradicionais de mídia fazem parte do passado. As ferramentas que se multiplicam na área de assessoria são cada vez mais instigantes e desafiadoras. Vão dos tradicionais releases aos modernos portais.
Exercício ético
Outros bons exemplos para reflexão estão registrados em estudos jurídicos do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo e da Associação Brasileira de Imprensa. Este último, conduzido pelo renomado jornalista e advogado Reinaldo Santos, autor do Vade-Mécum da Comunicação. Ambos vasculharam a legislação existente e dão conta de que algumas atividades da área de assessoria são de responsabilidade privativa de jornalistas. A nova regulamentação dos profissionais de jornalismo, em andamento, define isso com precisão.
Os estudos estão disponíveis nas instituições. Existem também legislações específicas que abrangem prefeituras e governos estaduais como os do Pará, de São Paulo, Rio e Bahia, que definem as atividades de assessoria para os profissionais de comunicação e algumas delimitadamente para os jornalistas.
O que na verdade precisa ser aprimorado na realidade brasileira definitivamente é o respeito mútuo nas relações, calcado no exercício ético, independente do ‘lado do balcão’ em que se esteja num determinado momento ou qual seja a habilitação específica na área de comunicação. E o reconhecimento de que na verdade todos – repórteres, editores, assessores, jornalistas e relações-públicas – dependem de práticas cada vez mais profissionais e conscientes, facilitadoras de seus compromissos públicos e privados.
Para ler e refletir
Racionalmente concebível é lembrar aos 50% dos jornalistas assessores vinculados às estruturas de comunicação organizacional no Brasil que observem com muita atenção o Código de Ética (aprovado desde 85 pela própria categoria para estabelecer seus direitos e deveres), e mais especificamente seu Art. 10, que diz que o jornalista não pode:
e) exercer cobertura jornalística pelo órgão em que trabalha, em instituições públicas e privadas, onde seja funcionário, assessor ou empregado.
Infelizmente tantos ‘fingem’ não conhecê-lo, desrespeitando-o em prol da ‘sobrevivência’.
E para aqueles que acreditam que ‘assessor de imprensa não é jornalista porque não tem a autonomia necessária para praticar o jornalismo’, ‘tem mesmo que ‘abrir as pernas’ quando o seu contratante faz a exigência’, ou ‘na empresa de comunicação há um mínimo de parceria entre o jornalista e o dono, pois ambos têm o interesse comum que é o leitor ou espectador’, cabe uma simples pergunta: será que existe autonomia necessária para se praticar jornalismo em algum canto do mundo? Não é muito difícil responder diante dos conglomerados dominados pelas poucas famílias e pelo patronato que as comanda no país e no mundo.
Como diz o jornalista e escritor francês Serge Halimi, a censura é mais eficaz quando não tem necessidade de se manifestar, quando os interesses do patrão, miraculosamente, coincidem com os da ‘informação’. ‘Neste caso, o jornalista fica prodigiosamente livre. E sente-se feliz. Como bonificação, concedem-lhe o direito de acreditar que é poderoso’. As experiências relatadas por Bourdieu (2004), Fallows (1996), Ramonet (1999), Marcondes Filho (2000), Chomsky (2003), Arbex Jr. (2001), Abramo (2003), Kovach & Rosenstiel (2003) e Lobato (2005), entre outros, também são bem ilustrativas. Estão disponíveis em qualquer boa biblioteca. É ler para crer, duvidar, ou pelo menos refletir.
******
Jornalista, coordenador da pós e professor da UFJF, autor e organizador do livro Jornalismo e Relações Públicas: ação e reação, uma perspectiva conciliatória possível, da Editora Mauad