A Copa do Mundo é uma bela oportunidade para revelar valores que vão além do futebol. A união dos povos e da solidariedade humana, a integração das nações em busca da paz, a importância do esporte na formação do caráter, e muitos outros. Valores que ressaltam as alternativas positivas diante de um mundo de violência, drogas e intolerância.
Infelizmente, no futebol pouco se fala e – pior – pouco se dá valor ao conceito da ética. Pelo menos no sentido correto que não admite concessões, onde uma situação ou pessoa são ou não éticos, sem meio termos, assim como não há mulher meio grávida ou político meio honesto. O futebol, dado à sua influência cultural sobre os povos, deveria ser um lugar privilegiado para se debater o tema. Mas não é.
É comum ver jogadores fazendo juras de amor a um clube para abandoná-lo no dia seguinte. Cancelam-se contratos, fingem-se contusões… Os dirigentes sonegam impostos, prometem o que não podem e desrespeitam as leis. Na Copa do Mundo os fatos são ainda mais graves diante da imensa exposição desse torneio não apenas entre os torcedores de futebol, mas diante de toda a sociedade. A ética é subjugada ou interpretada ao sabor dos interesses do momento. E os jornalistas têm muita culpa. Na Copa do Mundo, profissionais viram torcedores. E aí passa-se a ver a ética de uma forma inconveniente, como se este conceito admitisse a pluralidade de interpretações.
Uma pérola
Diante dos maus resultados da França nas duas primeiras rodadas – o que praticamente tirou as chances dos franceses de seguir na competição – não faltaram repórteres para dizer que o mundo estava satisfeito em ver abrir-se o caminho para a eliminação francesa, já que os ‘azuis’ chegaram ao Mundial graças a um gol de mão que só o juiz não enxergou ou não quis ver. Ponto: o mundo, incluindo aí os jornalistas brasileiros, não toleraram a irregular classificação dos franceses.
Brasil enfrenta a Costa do Marfim pela segunda rodada do mundial. Luis Fabiano faz um gol digno de ser chamado de golaço, a não ser por um detalhe: foi irregular. O atacante tocou com o braço na bola duas vezes. Ainda assim, comentaristas e narradores decretaram que se tratava do ‘gol da Copa’, no sentido de que foi o mais bonito. Mas não foi irregular? O juiz não errou? Não se deveria chamar a atenção para o erro? Não. ‘Gol da Copa’ e não se fala mais nisso.
No mesmo jogo, o zagueiro brasileiro puxa o atacante marfinense pela camisa dentro da área. O locutor pergunta ao comentarista, meio sem graça: pênalti? O comentarista de arbitragem – que está ali para isso – responde com esta pérola: ‘Todo mundo faz isso, eu não marcaria’. Foi pênalti, mas seria contra nós. Portanto, ‘deixa pra lá’. E este juízo passa para a toda a sociedade, incluindo as crianças.
Ficha limpa
E teve mais no jogo Brasil x Costa do Marfim. Kaká dá uma cotovelada no peito do adversário e é expulso. O jogador agredido levou às mãos ao rosto, simulando uma agressão diferente – e até pior – da que realmente sofreu, mas sofreu. O locutor destaca o fingimento do jogador marfinense e um dos comentaristas diz que o Kaká não fez nada, apesar das imagens a desmenti-lo. Chegou-se a dizer que o jogador brasileiro foi ingênuo e que o juiz exagerou… E se o expulso fosse o adversário?
Para fechar, na entrevista pós-jogo, o artilheiro Luis Fabiano, estimulado pelo repórter, diz que seu gol foi ‘uma mão santa’. Você provavelmente assistiu a ‘dica’ do repórter. Diante dessa, até o locutor ficou sem graça.
Uma das vozes mais lembradas na questão da ética no jornalismo é, até hoje, a do falecido jornalista Cláudio Abramo (1923-1987). Em seu livro A Regra do Jogo, ele diz que a ética do jornalista é a ética do cidadão, que é a ética do marceneiro e a do médico. Não existem diferentes éticas. Se desejamos ficha limpa nas eleições devemos exigi-la também na forma de tratar o semelhante, de lidar com o meio ambiente, nas pequenas e grandes ações. Na Copa do Mundo também. É a regra do jogo.
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Editor de séries especiais e chefe de reportagem, TV Gazeta, ES