A paisagem midiática inglesa jamais será a mesma depois do escândalo do News of the World. Isto já ficou claro, agora. Mas o sistema de regulação inglês já estava em questão muito antes daqueles lamentáveis eventos. John Kampfner, diretor e ex-editor do Index on Censorship, já comentava em sua revista a fragilidade da autorregulação na imprensa escrita em 2010. Depois, veio o caso de Max Mosley (ex-presidente da FIA que, em 2008, foi pego em flagrante pelo mesmo infame tabloide numa orgia sado-masoquista de tons nazistas) e as superinjunções, no mesmo ano. Mas o que são estas? São instrumentos jurídicos da justiça inglesa que permitem que uma pessoa investigada pela imprensa seja avisada com três dias de antecedência. Com esta vantagem, o cidadão sob escrutínio tem tempo para impor recurso legal e impedir a publicação de qualquer material a ser publicado. O recurso custa muito caro e seu uso fica limitado a poucos que dispõem dos recursos para pagar as despesas com as cobranças do Judiciário. Com as superinjunções, a Inglaterra estaria a estabelecer, segundo o ex-editor do Index, uma justiça de padrão duplo: a dos ricos e a dos outros.
Esse foi fundo por detrás na notícia no caso que, sem dúvida, vai mudar toda a regulação da mídia naquele país. A Inglaterra não tem lei de imprensa. Há um consenso sobre o status dos jornalistas, percebidos como pessoas comuns e que não necessitam de leis especiais para elas. Quem regula a imprensa é o PCC (Press Complaints Commission, ou Comitê de Reclamações da Imprensa). Este órgão, criado em 1991, é financiado por contribuições de toda a mídia escrita e “contém um conjunto de princípios básicos dando orientações a jornalistas e editores”. Mas não vai muito além de um grupo de normas de trabalho. Não tem o poder de aplicar multas “ou encomendar a um jornal que não imprima determinada notícia. Além disso, não tem o poder para sancionar jornalistas ou editores que se recusem a cooperar com seus procedimentos”. Quem explica é Perry Keller, professor de Direito do King’s College desde 1994, em seu texto “Lei da Mídia na Inglaterra (Media Law in England)”. A autorregulação encontrou seus limites com o caso das escutas telefônicas, neste ano.
Os modelos de regulação
Se a imprensa escrita não é regulada pelo Estado, com a mídia eletrônica e digital a coisa muda de figura: estas “são pensadas para ter uma maior influência sobre o público e estão sujeitas a controles e regulamentação do governo” (Perry, K). Em outras palavras, quanto maior o impacto social, maior a regulação. Por isso, as mídias digitais (incluindo aí o conteúdo na web dos jornais impressos) demandam regulação estatal, que é exercida pelo Ofcom (Office of Communications), que regula a conteúdo áudio-visual e das redes de telecomunicações oferecidos ao público desde 2003, através de um padrão assimétrico: conteúdos abertos são muito mais regulados do que a internet, ou vídeos encomendados por pagamento (video-on-demand).
Apenas recordando, os tipos de regulação da mídia eletrônica são três: o monopólio natural, o modelo de regulação estatal e o modelo híbrido, também chamado de “padrão assimétrico”, por ser mais flexível e “envolver uma combinação dos instrumentos de regulação do monopólio natural e da regulação da concorrência”. Este último, segundo matéria de José Roberto de Souza Pinto, publicado pela Teleco, apresenta as seguintes características:
** “Utilização de mecanismos para tratamento assimétrico em função do poder de mercado, seguindo o conceito de Poder de Mercado Significativo – PMS, que é definido segundo critério da agência reguladora para cada determinado produto ou serviço e sua área geográfica de atuação, classificando as empresas prestadoras de serviços de telecomunicações como detentoras de tal poder e que serão submetidas a regras mais rígidas, em contrapartida as classificadas como não detentoras de PMS estarão sujeitas a normas mais flexíveis e brandas;
** Assimetria regulatória em relação aos deveres das prestadoras detentoras de PMS (obrigações adicionais);
** Isonomia regulatória em relação aos direitos das empresas prestarem serviços nas mesmas condições;
** Adoção de regulação tarifária, com foco na produtividade e tetos tarifários para os serviços prestados;
** Imposição de obrigações de universalização, atendimento e qualidade dos serviços seguindo um mecanismo de ponderação para atender as assimetrias regulatórias;
** Adoção de sistema de incentivo e proteção ao desenvolvimento da concorrência;
** Imposição de medidas que coíbam o abuso de poder de mercado;
Cidadãos, e não consumidores
Os principais deveres legais do Ofcom são assegurar que:
** “O Reino Unido tenha uma vasta gama de serviços de comunicações eletrônicas, incluindo serviços de alta velocidade, tais como a banda larga”;
** “Uma ampla gama de programas de rádio e televisão de alta qualidade seja fornecida, apelando a uma série de gostos e interesses”;
** “Serviços de programação e rádio sejam transmitidos por uma variedade de organizações”;
** “Pessoas que assistem televisão sejam protegidas contra material nocivo ou ofensivo”;
** “As pessoas sejam protegidas de serem tratadas de forma injusta em programas de televisão e rádio, e de ter sua privacidade invadida;” e
** “O espectro de rádio (ondas de rádio usadas por todos, desde as empresas de táxi e proprietários de embarcações, até as empresas de telefonia móvel e emissoras) seja usado de forma mais eficaz”.
Como podemos notar, o Ofcom protege o cidadão. Equilibra as desigualdades. Fomenta a diversidade. Assegura uma política de modernização permanente dos meios de comunicação, e a inserção digital. A regulação da mídia inglesa pelo Ofcom tem como público de atendimento os cidadãos, e não os consumidores. As companhias são submetidas a normas que agem em nome do benefício da população usuária.
Tradição do Direito consuetudinário
Regulação não é cerceamento de liberdade de expressão, como pensam muitos na imprensa brasileira. Muito pelo contrário: a existência de um órgão regulatório, dentro de um ambiente que permite seu funcionamento autônomo e isento de interferências, é um pré-requisito para uma imprensa livre. Não sou eu que estou afirmando isso. Apenas estou manifestando minha concordância com o Freedom House, o lobby bipartidário americano criado para defender os interesses democráticos, dentro e fora do país. A criação de um marco regulatório não é uma ideologia “de esquerda”, maliciosamente insinuada para sabotar as liberdades dos cidadãos. Nada pode estar mais distante da verdade.
O caso do News of The World, com todos os seus desdobramentos até o momento, testou os limites da regulação da imprensa e da mídia inglesa até que estes ficassem mais que evidentes. Incendiou o debate sobre a autorregulação feita pelo PCC no país, nos últimos anos. Mas não derrotou a poderosa e tradicional mídia inglesa. Ao contrário: destruiu a maior ameaça que a mídia daquele país já enfrentou em sua história: Rupert Murdoch e seus asseclas. E ninguém pediu ainda por um regulador estatutário, como observou o jornal The Guardian (14/7): “Assim que você menciona regulação estatutária para os jornais, eles berram ‘stalinismo’, ‘Estado-policial’ e ‘ameaça de censura à imprensa’”, disse Steven Barnett, professor de comunicações na Universidade de Westminster.
Por outro lado, “tudo o que precisamos é ter uma rede de segurança estatutária para garantir que a autorregulação funcione”, disse o professor Barnett. Que acrescentou: “Não podemos confiar na imprensa para regular a si mesma.” A presença de uma rede de regulação estatutária pode ser uma solução para a que a autorregulação funcione efetivamente no Reino Unido. O grande problema será conciliar tal controle regulatório num país com tradição de direito baseada nos costumes, no Direito consuetudinário. A cultura local não se dá bem com o código escrito derivado do Direito Romano e do Código Napoleônico. Para eles, parece um conjunto de normas e regulamentos previamente impostos.
Referência para outros padrões
Tudo mudou, entretanto, depois do escândalo do tabloide. A notória fragilidade do PCC tem que ser compensada de alguma forma. Por regulação do Estado, ou por norma mista, a imprensa inglesa há de encontrar o caminho de volta ao jornalismo responsável. Por seu histórico de lutas, escândalos, e forte tradição de liberdade de expressão, o Reino Unido tem tudo para consolidar um tipo de jornalismo que, como disse John Kampfner, “signifique um legítimo e leal desafio à autoridade”.
E uma vez passado este momento tão terrível de vergonha, a história da regulação da mídia na Inglaterra deverá servir, para o mundo, como uma espécie de laboratório de jornalismo experimental. Ali encontramos tanto a extrema liberdade facilitada pela tradição de livre expressão (que até este momento impediu a presença do Estado na regulação direta da imprensa escrita), como também reguladores estatutários independentes, como o Ofcom, que fornece as principais diretivas para as mídias eletro-eletrônicas e digitais num padrão de regulação assimétrico que é entendido como adequado pelo público daquele país.
É um padrão complexo e, ao mesmo tempo, irreprodutível, dada a unicidade de sua construção histórica. Mas se o entendermos como um laboratório de experiências jornalísticas acumuladas ao longo da História, o modelo britânico poderá servir como referência de base para outros padrões em países de tradições e histórias diferentes.
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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]