Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A renúncia à imaginação

Outro olhar pode dirigir o foco sobre um evento da grandiosidade de uma Copa do Mundo. É este o propósito do presente artigo. Estrategicamente, não quis, antes, manifestar-me a respeito do tema. Deixei que o jornalismo esportivo (impresso e eletrônico) abusasse de seu ilimitado e hiperbólico discurso triunfalista e aguardar o desfecho de algo cujos sinais eram, desde o início, reconhecíveis. Não cabe, agora, no amargor do fracasso, estigmatizar Parreira e cia.

Galáticos ou egolátricos?

A mídia, com a devida autocrítica, deve ser capaz de chamar a si parte do fracasso pelas lentes de aumento com as quais exibe, forja e catapulta celebridades. No rastro dessa estratégia idolátrica, estão mirabolantes contratos, vultosas verbas publicitárias, assédios permamentes e incontáveis gravações de comerciais.

A cobertura esportiva do jornalismo brasileiro, na sua costumeira submissão, afora pontuais artigos de Juca Kfouri e Renato Marício Prado, incensou quanto pôde o elenco de recordes que seriam batidos por Cafu, Roberto Carlos e Ronaldo. Ótimo, o objetivo deles foi alcançado. Até o esforçado Lúcio que, avisado por um repórter, acabou por superar o zagueiro paraguaio, Gamarra, quanto ao tempo maior sem praticar falta.

Os jogos sofríveis exibidos pela seleção brasileira, a exemplo da mediocridade geral da competição, passaram praticamente incólumes a críticas. Ao contrário, a mídia, ao longo das semanas, construiu, passo a passo, roteiros de minissérie: o caso Ronaldo, o caso Robinho, o caso Kaká, o caso Adriano e, por fim, o caso Ronaldinho. Enquanto isso, a seleção, mediocremente, passava por adversários de segunda divisão.

Em nenhum momento, a mídia brasileira assumiu um olhar crítico. Era óbvio que Cafu, Roberto Carlos, Adriano e Kaká (o ‘novo’ namoradinho do Brasil), sem mencionar os 93 kg de Ronaldo, não rendiam o necessário. Contratos? Pressões de anunciantes? Preservação de interesses da CBF? Sim, os ‘galáticos’ eram intocáveis dentro e fora do campo. Afinal, na época da preparação, oito meses antes da Copa, havíamos vencido a seleção dos Emirados Árabes por 8×0, um dos tantos amistosos impostos pela direção da CBF que trata o futebol brasileiro como um produto de venda. Sobre tal fato, a imprensa também nada declara.

De simulações em simulações, a marca ‘galáticos’ se foi consolidando. Seriedade? Nenhuma. Cafu, com sua habitual egolatria, revestida de humildade, ser alçado a capitão da seleção? Em que jogo Cafu se portou em campo como capitão? E os demais, sob a liderança de Ronaldinho, eleito, por duas vezes consecutivas, o melhor jogador do mundo, sempre empenhados em afinar o pagode? Que dizer a respeito do inepto Roberto Carlos ao mandar recadinho desaforado a Pelé? Quem será Roberto Carlos na história do futebol?

Veio a derrota para a França, aliás, graças ao ‘genial galático’, Roberto Carlos. Após o jogo, nenhum depoimento com mínimo tom de autocrítica foi registrado. Nenhuma lágrima dos ‘galáticos’ escorreu em seus rostos. Seus contratos e recordes estão assegurados. Compromisso com torcedores brasileiros é algo que não lhes perpassa a vida.

Não ao racismo

Que fator afinal retirou, precocemente, a seleção brasileira da competição? Não é o técnico, não é o jogador e, menos ainda, a arbitragem. O que eliminou o Brasil é a mesma razão que, contra a Alemanha, fez a Argentina sucumbir, a despeito das virtudes potenciais das duas seleções eliminadas. O imaginário da logística neoliberal asfixiou a volúpia libertária da imaginação. Sempre que a inventividade de culturas colonizadas se curvou a imperativos instrumentais, o resultado foi (e é) a submissão da qual decorre a experiência fracassada. Assim se comportaram as equipes da Argentina e a do Brasil.

Na situação decisiva, as respectivas comissões técnicas agiram em conformidade com a imagem de uma lógica determinada pela política de resultados e perderam. Que o europeu assim proceda é compreensível. Não é o caso da experiência cultural sul-americana cujo suporte reside na expansão de sua inventividade. A identidade do futebol sul-americano passa pela soltura, pela mobilidade criativa. Optaram pelo modelo oposto com resultado ainda mais danoso para a seleção brasileira que, sequer, chegou à prorrogação.

O fundamento do ideário neoliberal não aprecia a face libertária da imaginação. A esta, prefere o modelo centrado e pragmático que tanto vale para a economia quanto para a política, para o esporte, para a arte e tudo mais. No mundo do futebol neoliberal, não há mais seleções; há reunião de celebridades que vendem a marca de seus clubes e de seus anunciantes. O caso Deco é bastante elucidativo: nascido e criado no Brasil, naturalizado português e atuante no futebol espanhol. Como Deco, existem dezenas.

Copa do Mundo, enfim, se tornou apenas um dos maiores eventos a mobilizarem bilhões de dólares para o entretenimento de bilhões de pessoas que projetam ilusões, curam frustrações ou administram, como podem, suas vidas em meio a jornadas esportivas. E só.

Enquanto perdurar essa febre a beirar a histeria coletiva, nada teremos além de decepções. Em sã consciência que partida efetivamente fez o espectador vibrar pelo reconhecido mérito?

Em suma, duas anotações finais: 1) mais uma vez, mantém-se a escrita de uma seleção não vencer duas Copas seguidas, desde 1962; 2) o dado pitoresco: justamente na Copa cuja mensagem – mais do que bem-vinda – é ‘Say no to racism’, nenhuma seleção fora da Europa sobreviveu para as semifinais. [Texto concluído às 23h15 de 1º/7/06]

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)