Em 5 de janeiro, a Folha de S.Paulo publicou um artigo de Luiz Lara, presidente da Abap (Associação Brasileira das Agências de Publicidade), intitulado ‘Propaganda, liberdade e desenvolvimento‘. O texto, reproduzido neste Observatório, é uma peça interessante para pensar a ideologia através da qual a publicidade justifica a sua atuação na sociedade brasileira. Mais interessante ainda é notar a semelhança e as diferenças entre os argumentos de Lara e aqueles utilizados pelas lideranças do setor durante a ditadura militar.
Hoje, como naquele período, o núcleo da justificação ideológica da publicidade é a sua associação ao ‘desenvolvimento’. Vejamos o que dizia Mauro Salles no Anuário da Propaganda de 1971:
‘A década de 70 começou com a economia em expansão, com a inflação sendo controlada, com a administração pública sendo regida por normas de eficiência jamais atingidas por um país sul-americano. Todos falam no milagre brasileiro e dizem que estamos às portas de nos tornarmos um país desenvolvido: o Brasil está entrando na era do consumismo.’
Hoje, como naquele período, a operação ideológica fundamental consiste em reduzir o desenvolvimento à mera expansão econômica, sem mencionar o fato de que esta expansão beneficia muito mais as grandes empresas do que a sociedade em geral. Omite-se, por exemplo, os enormes custos sociais da acumulação capitalista: o lixo, o trânsito, a privatização da vida em todos os níveis, a degradação do espaço público, do meio ambiente, da sociabilidade etc.
Sabemos, com pesar, mas sem espanto, que o crescimento econômico não garante o desenvolvimento social. E foi essa percepção crescentemente difundida na sociedade brasileira ao longo dos anos 1980 que legou à publicidade um problema complicado: o de legitimar a atuação das grandes empresas capitalistas, vistas como as principais, senão únicas, beneficiárias do modelo econômico cuja falência estava sendo testemunhada naquele momento.
Censura e conteúdo editorial
Desde a década de 1980, as crises econômicas e a mobilização política foram desgastando aquela ideologia do progresso, pelo menos entre os setores organizados da sociedade civil. Se, durante a ditadura, o apelo ao desenvolvimento parecia suficiente, hoje ele tem que se articular a uma suposta defesa da democracia. Durante a redemocratização, lideranças e entidades empresariais começaram a produzir discursos em que capitalismo e democracia estivessem fortemente associados.
Às vésperas da Constituinte, por exemplo, uma campanha articulou mais de 200 empresas e 150 veículos de comunicação no que se denominava o ‘movimento nacional pela livre iniciativa’. Na verdade, a associação retórica entre capitalismo e liberdade é a pedra fundamental da justificação ideológica desse modo de produção, desde o liberalismo, passando pela Guerra Fria até o período neoliberal em que nos encontramos ainda.
É sintomática a aproximação entre a ‘liberdade de expressão comercial’, argumento primeiro do setor publicitário contra as tentativas de restrição da publicidade, e a ‘liberdade de expressão editorial’, tal como nomeada no artigo de Luiz Lara. A ideia é a de que o financiamento publicitário dos veículos de comunicação protegeria o conteúdo jornalístico de qualquer censura. Mas toda ideologia tem um ponto cego, aquilo sobre o quê ela não pode falar. Nesse caso, omite-se a censura econômica que as próprias empresas (jornalísticas, publicitárias e anunciantes) podem exercer sobre o conteúdo editorial.
No argumento de Lara e dos tantos que se postam contra o controle social dos meios de comunicação e da publicidade, é como se tivéssemos uma esfera pública perfeita, em que todos pudessem falar e ser ouvidos em igual proporção. Nada é mais distante da nossa realidade. A sociedade civil organizada precisa mesmo disputar com essas empresas o poder de produzir e difundir a cultura.
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Professora doutora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco, autora de Nova retórica do capital – A publicidade brasileira em tempos neoliberais (EDUSP,2010)