‘A virtude ostentada converte-se em seu contrário. Quem ostenta a própria caridade ressente-se da falta de caridade. Quem ostenta a própria inteligência é geralmente um estúpido.’ (Norberto Bobbio)
‘Você pode não acreditar em Deus, mas Deus acredita em você.’ O jornalista Humberto Pereira talvez procurasse animar seu grande amigo, internado no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, quando, sem exibir procuração para tanto, lhe transmitiu os votos de confiança de Deus, ninguém menos que Deus. O amigo, o também jornalista Sidnei Basile, não demonstrou emoção: ‘É o quanto basta’.
Tinha câncer no cérebro. Sabia que estava condenado. Com a discrição que era sua marca registrada, há de ter avaliado que aquele não era um bom momento para colóquios teológicos. Recebeu com sobriedade o recado e pôs um ponto final na história. Com palavras econômicas.
Na quinta-feira (17/3), ao lado do caixão do amigo, no Cemitério Gethsêmani, o mesmo Humberto Pereira fez um discurso de despedida e reproduziu essa conversa, que é bastante reveladora. Por meio dela temos uma ideia fiel do caráter e da inteligência espirituosa desse que foi um dos maiores jornalistas econômicos do Brasil – e um dos homens mais dignos que conheci. Sidnei tinha muitas virtudes, mas não ostentava nenhuma. Não pedia comiseração a ninguém, nem mesmo a Deus.
Em vez disso, promovia gente. Nas redações da Gazeta Mercantil e da revista Exame, que dirigiu, notabilizou-se por ensinar jornalismo e por melhorar os profissionais que chefiou. Escutava os subordinados. Sabia identificar neles o que tinham de mais brilhante. Não foram poucos os que cresceram e prosperaram sob sua orientação.
Falta sentida
Sidnei foi um civilizador, um profissional que elevava os padrões de conduta e de convivência nos ambientes por onde passou. O posto que exerceu no final de sua carreira, o de vice-presidente de Relações Institucionais do Grupo Abril, veio para ele como um passo natural. Sua aptidão para construir pontes de entendimento, com base no que chamava de comunicação de boa-fé, fez dele um articulador de diálogos de alto nível.
Conhecia e cultivava os valores e as melhores práticas da imprensa – seu livro Elementos do Jornalismo Econômico, que ele pretendia atualizar, é uma prova disso – e, ao mesmo tempo, conhecia muito bem o mercado e as instituições do País. Advogado pelo Largo de São Francisco e também formado em Ciências Sociais pela USP, foi interlocutor de magistrados, ministros, parlamentares e presidentes, que viram nele, bem mais que o representante de uma empresa ou de uma organização, um defensor da liberdade, alguém a serviço da democracia e do público. Era assim mesmo: a respeitabilidade que ele conquistou em vida, em esferas diversas, eu a registro aqui como um fato notório, não como opinião pessoal.
Sidnei não contava, e não gostava que contassem, mas enfrentou a repressão política durante a ditadura militar e sofreu no corpo a brutalidade do regime. Nunca se vangloriou nem reclamou de nada disso. Apenas seguiu adiante. A liberdade pela qual se empenhou naqueles anos é a mesma liberdade que trabalhou para expandir agora, quando se opôs aos defensores de medidas que poderiam redundar em formas oblíquas de cerceamento do direito à informação.
Com sua voz calma, que transmitia serenidade e quase doçura, com seus modos contidos, com a delicadeza de quem se divertia por ter desenhado um móvel especial para ler o jornal toda manhã (uma prancha de madeira com uma inclinação de uns 40 graus), com o capricho dedicado de um criador de ovelhas, sobre as quais editou uma revista com receitas ilustradas testadas, e muito bem testadas (o cidadão sabia cozinhar), era um viabilizador de aproximações, as mais difíceis, para as quais servia como uma garantia de que não haveria rebaixamento ou degradação de nenhum lado. Assim como juntava pessoas, conciliava propósitos e projetos diferentes, sem descaracterizar ou diminuir nenhum deles. Com ele por perto a gente sentia que as coisas caminhariam bem.
Aos muitos conselhos e entidades de classe, nacionais e internacionais, a que pertenceu Sidnei fará uma falta silenciosa, difícil de traduzir. As pontes de diálogo que ele abriu ficam órfãs. Sua ausência será sentida, principalmente, quando for necessária a temperança, quando for preciso desarmar espíritos em prol de consensos mínimos, sem os quais se alastram os estranhamentos.
Muito cedo
Tudo isso porque da serenidade extraiu sua força. Num pequeno livro, Elogio da Serenidade, Norberto Bobbio discorre sobre essa virtude. ‘Acima de tudo, a serenidade é o contrário da arrogância, entendida como opinião exagerada sobre os próprios méritos, que justifica a prepotência’, escreve o pensador italiano. ‘O indivíduo sereno não tem grande opinião sobre si mesmo, não porque se desestime, mas porque é mais propenso a acreditar nas misérias que na grandeza do homem, e se vê como um homem igual a todos os demais.’ Parece uma contradição, mas, exatamente por não ter nenhuma queda pelas grandezas vistosas, Sidnei inspirava tanta confiança.
Inspirava boa-fé. Entre redações que acreditam em valentias tribais, fustigando os que divergem para intimidá-los, e políticos que se comprazem em se refugiar na censura judicial, como nos falta boa-fé. Como nos falta a serenidade. Poucos sabem disso, mas aqui vai outro fato: sem Sidnei Basile a rotina da imprensa e de parte das nossas instituições fica um pouco mais penosa.
Por um bom tempo vou-me lembrar dele sorrindo, em sua cama de hospital, olhando para as fotos da família que mandou pregar na parede. Não era só Deus, não. Muitos de nós acreditávamos em Sidnei Basile. ‘É o que basta’, ele diria, incomodado com o que tomaria como elogios. Mas não bastou, nem basta. Ele morreu aos 64 anos de idade.
Foi uma bela vida, mas ainda era cedo.
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Jornalista, professor da ECA-USP e da ESPM