Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘A sociedade mediatizada não é uma sociedade feliz’

Um imperativo irreal e cruel diz às pessoas que elas devem estar constantemente ‘disponíveis’ através das novas tecnologias, caso contrário estão mortas, ou se tornaram jurássicas. Essa sociedade mediatizada está longe de ser feliz, alfineta o jornalista Ciro Marcondes Filho na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. ‘A vida na web depende da submissão do usuário à ditadura da conexão permanente; o sofrimento e a depressão de cada um se constroem pela pouca quantidade de visitas à sua página no Facebook.’


A respeito dos jornalistas frente a esse quadro de verdadeiro desespero por conexão e atualidade ininterruptas, provoca: ‘Quando os homens se submetem à máquina, eles desaparecem nela, ela os devora. Quando eles se colocam numa distância crítica, têm chance de ver além do horizonte técnico e reagir a ele, sobrevivendo.’


Ciro Marcondes analisa, ainda, os desafios da profissão de jornalista em nossos dias: ‘Estamos diante de um novo jornalismo, mas não diante de uma nova comunicação’, e completa: ‘O jornalista não tem escolha: ou se transforma ou morre. Uma sociedade pode sobreviver sem jornalistas, mas isso será trágico. Será uma sociedade de shopping centers globais, onde só serão aceitas regras pasteurizadas e ascéticas de convivência, onde a vida será mantida artificialmente, onde qualquer reação mais humana será perseguida por ser perigosamente subversiva.’


Jornalista e sociólogo graduado pela Universidade de São Paulo – USP, Circo Marcondes Filho é mestre em Ciência Política e doutor em Sociologia da Comunicação pela mesma instituição com a tese Comunicação, ideologia e dominação. Fez o pós-doutorado na Universidade Stendhal, de Grenoble, e é livre docente pela USP. Professor e pesquisa da Escola de Comunicação e Artes – ECA, da USP, é autor de dezenas de obras, das quais destacamos: O conceito de comunicação e a epistemologia metapórica, Nova Teoria da Comunicação, Vol. III, Tomo 5 (São Paulo: Paulus, 2010), A comunicação para os antigos, a fenomenologia e o bergsonismo, Nova Teoria da Comunicação, vol. III, Tomo 1 (São Paulo: Paulus, 2010) e Ser jornalista – A língua como barbárie e a notícia como mercadoria (São Paulo: Paulus, 2009).


Confira a entrevista.


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Comunicação é um saber que nasce da Filosofia


Em que aspectos a comunicação não é uma ciência aplicada?


Ciro Marcondes Filho – A princípio, usar a expressão ‘comunicação como ciência aplicada’ significa o mesmo que dizer que comunicação não é nenhuma prática científica, nenhum saber específico, nenhum campo próprio de investigação, mas algo menor, assessório, complementar, espécie de ‘espaço de aplicação’ de outros saberes, esses sim, sólidos, constituídos e reconhecidos, como seria, por exemplo, o caso da Sociologia, da Psicologia, da Antropologia etc. Comunicação efetivamente não é isso, não é aplicação de nada; é produção de um conhecimento próprio, específico, único. Já é hora de as instituições de fomento e apoio às pesquisas reformularem suas classificações e situarem a Comunicação no conjunto de saberes reconhecidos e validados pela comunidade científica.


Quais seriam as bases para a reivindicação de maioridade desse saber?


C.M.F. – A Comunicação tem condições de propor as bases para sua consolidação, em primeiro lugar, pelo fato de estar concentrando suas preocupações na definição de seu objeto próprio, a comunicação, que não é trabalhado por nenhuma das demais ciências humanas e, em segundo lugar, por propor uma forma específica de investigá-lo, derivada dessa mesma definição de objeto. As perguntas que esta área do conhecimento se faz são ‘O que é comunicar?’, ‘O que se entende intrinsecamente por `comunicação´?’, ‘Qual é a natureza deste processo?’ Desta maneira, a comunicação disporia de um núcleo epistêmico específico e exclusivo, que seria o dos estudos dos processos e do acontecimento comunicacional.


A forma de estudá-la não é por meio dos atuais métodos de pesquisa, pois estes derivam de outros contextos de conhecimento, são produtos de outras visões de mundo, outras filosofias, de outro lastro histórico. Em última análise, eles estão subordinados a um modo de proceder que engessa a pesquisa comunicacional, cujo objeto é, por natureza, movente, oscilante, instantâneo e subordinado a condições e situações que só se dão uma única vez.


A ciência da comunicação propõe ao campo do saber uma forma própria de realização de suas investigações partindo de uma história epistemológica diferenciada, de origens filosóficas próprias e de uma base que vem desde a Antiguidade clássica, passando pelo pensamento ocidental moderno, chegando até as colaborações da fenomenologia, do construtivismo, e da filosofia existencial. Comunicação é um saber que nasce da Filosofia. Seu modo de realização inspira-se na apreensão estética e sua prática teórica é tributária da literatura.


Revisão séria e radical


Quais são os grandes desafios da comunicação para os próximos anos em face do avanço tecnológico e da midiatização?


C.M.F. – A área de comunicação é o setor do conhecimento mais próximo das questões relacionadas ao uso das tecnologias online para produção e emissão de sinais, dados e conteúdos. Cada vez mais as sociedades estarão engajadas neste complexo sistema tecnológico e cada vez mais os relacionamentos humanos, os contatos, as trocas de toda natureza passarão pela mediação técnica. Somente a ciência da comunicação tem condições de poder aprofundar a investigação de seus processos e resultados. Esse, seu maior desafio, a coloca como área do saber prioritária para essas investigações.


Que tipo de jornalista se configura e faz necessário a partir desse cenário?


C.M.F. – A prática jornalística tem sofrido forte influência da mudança tecnológica e tem se visto diante de desafios que ultrapassam as grandes questões políticas do passado, as dificuldades econômicas da origem do jornalismo, a periculosidade excepcional dos correspondentes de guerra de todos os tempos. Trata-se, hoje, de muito mais do que tudo isso, do próprio perfil da profissão que se vê diante de um sistema que produz, ele mesmo, continuamente fatos e novidades, revela notícias retumbantes e se atualiza mais rapidamente do que a própria imprensa. Não bastasse isso, mesmo a comunidade de usuários, formada por centenas de milhões de pessoas, tornou-se, ela também, ‘colaboradora’ na produção de fatos e factoides jornalísticos. Visto dessa maneira, a prática jornalística se vê hoje inundada por essa verdadeira enxurrada informacional que lhe impõe uma séria e radical revisão de sua atuação e de sua importância para não submergir totalmente a essa situação.


À distância do processo


Existe uma crítica ao excessivo tecnicismo dos cursos de Jornalismo, por terem certa carência nas áreas humanas. Esse cenário será agravado com o constante incremento de tecnologias e suas demandas na rotina da profissão?


C.M.F. – Os cursos de Jornalismo demonstram no Brasil duas tendências muito claras. De um lado estão aqueles que pretendem reduzi-lo a uma função meramente técnica e convencional de produção de notícias, a um papel secundário na ordem da política, da economia, da cultura e da sociedade. É o setor mais retrógrado do ensino de jornalismo. Os professores não vêm da academia, são antes ex-jornalistas pouco familiarizados com a prática científica, cujo trabalho é apenas repassar uma experiência profissional repetitiva e desgastada; ou, então, são acadêmicos teoricamente mais frágeis, que buscam compensar sua inconsistência intelectual através da defesa de guetos auto-enclausurados mas politicamente ativos. É o mesmo setor que pretende separar o ensino de jornalismo dos cursos de comunicação e aspira reduzir o jornalismo a uma formação profissionalizante comum, banal.


Do outro lado estão os cursos sintonizados com a necessidade de formação teórica e intelectual do profissional de imprensa para capacitá-lo aos desafios contemporâneos, principalmente diante da velocidade das mudanças da sociedade atual. Os jornalistas formados por faculdades do primeiro tipo serão fatalmente jornalistas triviais, o proletariado da redação, mal pagos e desvalorizados, exatamente porque, formados segundo princípios somente técnicos, não dispõem de capital cultural e intelectual para fazer valer sua posição no mercado. Aqueles que são formados por faculdades do segundo tipo são os únicos que poderão aspirar postos de importância na imprensa brasileira, visto que estarão à altura dos desafios que não são apenas técnicos, mas que exigem uma inserção social mais crítica e com efeitos mais duradouros.


Cursos tecnicistas…


C.M.F. – Naturalmente, o conflito entre esses dois estilos de formação ficará mais agravado com a tendência da tecnologia em rotinizar a profissão e destituir o jornalista de sua diferença em relação a outros profissionais mediáticos. Os cursos tecnicistas estarão, por isso, cada vez menos capacitados a enfrentar o desafio tecnológico por serem antiquados e comandados por professores muito aquém das altas exigências da tecnologia. Para estar em fase com o desenvolvimento da informatização e da sucessão de transformações, o profissional precisaria estar intelectualmente capacitado a uma visão à distância do processo, a um horizonte que transcenda o reducionismo da tecnologia. Quando os homens se submetem à máquina, eles desaparecem nela, ela os devora. Quando eles se colocam numa distância crítica, têm chance de ver além do horizonte técnico e reagir a ele, sobrevivendo.


O jornalista não tem escolha


Já se pode falar em outro jornalismo e em outra comunicação? Por quê?


C.M.F. – Sim, estamos diante de um novo jornalismo mas não diante de uma nova comunicação. O novo jornalismo opera de modo online, considera todas as movimentações que aparecem na tela, sejam elas de blogs, twitters, facebooks, em suma, tudo que desponta como tema especial dentro da enxurrada de acontecimentos banais e triviais que preenchem todos os dias as telas dos computadores. A fonte tornou-se menos exclusiva, a velocidade passou a ser maior, a checagem e a avaliação dos efeitos tornaram-se mais irresponsáveis, há mais perigos no ar. Os boatos, que demoravam algum tempo para se diluir, mas que ainda poderiam ser corrigidos, têm, na atualidade, a plena realização de seu percurso noticioso e circulam agora plenamente como verdade, expondo pessoas diariamente na imprensa. O Twitter veio para dinamizar ainda mais esse processo e sua periculosidade e diante dele, todos são caluniadores em potencial. Os riscos para o cidadão comum, assim como para o político, cresceram exponencialmente.


Todas as tendências conhecidas da história do jornalismo (sua origem na esfera pública burguesa do século 19, sua transformação em imprensa de massa, a crise diante dos regimes totalitários) foram deixadas para trás diante da revolução da informática, ocorrida a partir das últimas décadas do século 20. Tudo isso, de alguma forma, já foi tratado no meu A saga dos cães perdidos. Mas, já nesse livro, que é do ano 2000, eu anunciava que o profissional de imprensa estava mais ou menos perdido diante da imensa transformação que estava por vir. Colocado diante dela, o jornalista não tem escolha: ou se transforma ou morre. Uma sociedade pode sobreviver sem jornalistas, mas isso será trágico. Será uma sociedade de shopping centers globais, onde só serão aceitas regras pasteurizadas e ascéticas de convivência, onde a vida será mantida artificialmente, onde qualquer reação mais humana será perseguida por ser perigosamente subversiva. Algo no estilo do Fahrenheit 451 (Truffaut, 1966): o campo de concentração total, perfumado e estilizado.


A criação da realidade medial


De forma geral, o que podemos entender por midiatização? O que caracteriza essa nova ‘ambiência’ em que as novas tecnologias se tornam meios de comunicação também?


C.M.F. – Prefiro utilizar o termo mediatização, visto que ‘midiatização’ é uma excrescência linguística que deve ser evitada, como, aliás, tudo ligado ao termo mídia. As tecnologias não são apenas máquinas, aparelhos, redes e sistemas internacionais de comunicação. Isso ainda está no plano dos hardwares. As tecnologias constituem mundos, criam universos paralelos, ambientes de contato, convívio, relacionamento. Não me parece que eles ‘comunicam’, pelo menos no sentido que me parece correto, pois, comunicação é, antes de tudo, quebra de normas, desafio, trepidação das ideias, saída dos lugares-comuns, abandono do convencional e transformação, mudança, alteração da pessoa ou do conjunto social que a recebe. Assim, as tecnologias são ambientes, contextos de operação, complexos de situação. Não é, no entanto, por isso que elas não comunicam. Comunicam, isso sim, pelo fato de não trazerem em si o componente da alteridade, daquilo que está imbuído de vida, tanto nos contatos humanos quanto nos contatos de pessoas com produtos culturais (filmes, livros, peças, instalações etc.).


Em que medida podemos entender a midiatização como fruto da sociedade da informação?


C.M.F. – Ela não é fruto da sociedade da informação; ela é resultado da sobreposição de mundos. O mundo da informatização, surgido do desenvolvimento da cibernética durante a Segunda Guerra Mundial, instalou-se no quadro da civilização ocidental como um novo mundo. A chamada ‘sociedade da informação’ tem sua origem, talvez, num quadro mais remoto, no início do século 20, quando toda a cultura e o pensamento do Ocidente promoveram a grande virada cultural, que foi a criação de uma segunda realidade, a realidade medial, com a introdução do rádio, do cinema de massas, da imprensa de tiragens milionárias, da indústria publicitária, depois, com a televisão. A sociedade se torna da comunicação e da informação no momento em que todos os sistemas técnicos voltam-se à difusão em larga escala, padronizando notícias, acontecimentos, fatos sociais, criando aquilo que McLuhan, nos anos 1960, havia denominado de aldeia global.


A ditadura da conexão


O que marca a transformação da ‘sociedade dos meios’ para a ‘sociedade midiatizada’?


C.M.F. – Essas são definições polêmicas e jogam com usos linguísticos equivocados. A sociedade dos meios, dos meios de comunicação ‘de massa’ (como os vistos acima: imprensa em alta escala, cinema como produção do glamour, emissão de televisão que conecta todo um continente no mesmo horário e no mesmo programa), é um quadro do século 20, uma sociedade que opera ainda com o analógico, com a materialidade, com a geografia, com as diferenças históricas; trata-se de uma explosão de sinais e informações que abala o planeta pela penetração, pela força, pela capacidade de agregação em torno dos veículos, por uma certa possibilidade de manipulação e controle. Trata-se da chamada indústria cultural, conceito que ainda não perdeu sua validade teórica e que foi inicialmente descrito por Walter Benjamin e que se tornou a categoria fundante da sociedade dos meios (mediengesellschaft, para os alemães) e que ganhou estatuto científico com Adorno e Horkheimer, na sua Dialética do esclarecimento. Já a nova sociedade das tecnologias informáticas, caracterizada equivocadamente como ‘sociedade mediatizada’, visto que este termo é idêntico ao anterior, é este ‘mundo novo’ que se sobrepôs ao antigo mundo. Nada aqui é fixo, permanente, não há memória, tudo sendo digital se desfaz em seguida, a velocidade é alta e há a construção de mundos para onde pessoas podem se transportar virtualmente, entrar em contato, construir casas etc. (Convém destacar que essa confusão conceitual ‘sociedade dos meios’ e ‘sociedade mediatizada’ – que são terminologicamente a mesma coisa – é resultado de nossa indigência cultural e intelectual, pois, em vez de traduzirmos corretamente o termo ‘media’, da língua anglo-saxônica, por ‘media’, como o fizeram os franceses, espanhóis, italianos e portugueses, criamos essa figura bizarra e infeliz do termo ‘mídia’, que nada significa, a não ser o testemunho de um pensamento canhestro e subdesenvolvido.) Prefiro opor a sociedade dos meios (de comunicação de massa), a mass media society ou civilization, à sociedade virtual, sociedade tecnológica.


Como a midiatização e a tecnocultura impactam no modelo de leitura usado nos últimos séculos?


C.M.F. – A leitura não perdeu espaço com as tecnologias. Ao contrário, diante da tela do computador não se faz outra coisa senão escrever e ler. O que foi perdido foi o investimento na leitura extensiva, a leitura de livros, de matérias jornalísticas longas, de textos reflexivos. A internet opera preferencialmente com a escrita, a escrita curta e imediata. Ela é, nesse sentido, sensualista, das primeiras reações, das primeiras emoções, da percepção instantânea, dos flashes. Isso poderia ser válido para usos na pesquisa fenomenológica. Porém, não é assim que ocorre. A velocidade de escrita e de leitura está relacionada à agitação mais ou menos alucinada da vida cotidiana, estimulada pelas tecnologias comunicacionais. Elas permitem uma quantidade fabulosa de acessos, contatos, dados, que fazem o usuário ser acometido de uma certa obsessão de tudo dominar, de tudo ler, de tudo possuir, o que torna sua vida ainda mais dramática. A sociedade mediatizada não é uma sociedade feliz; ao contrário, é uma sociedade da compulsão, da cobrança invisível, dos apelos permanentes de estar conectado, pois, caso contrário, a pessoa estará ‘morta’. A vida na web depende da submissão do usuário à ditadura da conexão permanente; o sofrimento e a depressão de cada um se constrói pela pouca quantidade de visitas à sua página no Facebook. A esperança que nos dá o admirável mundo novo é o fato de que ainda podemos sair dele.