Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A tal da linha editorial

Com raríssimas exceções, pode-se dizer que hoje não mais existem veículos com uma linha editorial. Essa coisa quase extinta é bastante difícil de se definir e as pessoas praticamente não percebem quando ela está lá. Inconscientemente, os leitores mais sensíveis sabem que determinado periódico tem uma ‘cara’ com a qual eles se identificam – mas, se perguntados, não saberiam defini-la de maneira objetiva. É um troço assim e tal…

Várias são as causas da atual situação. Quando o veículo é rico ou poderoso (ou as duas coisas), sofre com as pressões e sacrifica inevitavelmente a linha editorial. Pegue qualquer semanário de grande circulação ou qualquer diário dos mais importantes. No primeiro caso, são as publicações de maior tiragem (e, portanto, de maior influência), assim devem contemplar os interesses do Brasil inteiro. Literalmente. É o último ato do governo, a guerra de blocos aliados, a empresa que financia a sua existência, o evento de algum fulano famoso, a fofoca para derrubar inimizades, o disco do amigo do alheio, a carreira jornalística da filha do interventor etc. – gente da qual a revista depende e à qual tem de atender, prontamente, no balcão.

No caso dos diários, é basicamente a mesma coisa – com a diferença de que eles não são mais tão lidos (e influentes) como antes e, com as oscilações de preço do papel (importado), são quase todos deficitários. Com a ascensão do audiovisual no século 20 (cinema, televisão, vídeo), a mídia impressa de massa par excellence ficou sendo a revista (ilustrada) e não mais o jornal. Não é uma questão de gosto; é fato. Logo – apesar das pressões, que ainda são fortes –, os diários podem elevar o nível um pouco mais e se sacrificar menos do que o normal. Alguns espaços são tão ou mais disputados do que nas revistas (vide as colunas sociais), mas são focos isolados e não a regra geral.

Cena clássica

O editor, então, se submete a uma hierarquia que, não necessariamente, respeita as suas intenções. O veículo, antes de tudo, é uma empresa que tem de sobreviver; assim, no mínimo, tem de vender mais exemplares (tiragem) e mais anúncios (publicidade). Quando não depende de ajuda governamental, via financiamentos do BNDES, para citar um exemplo. O imperativo econômico é o mais forte e dele derivam outros. Como a ordem é vender, a ordem – indiretamente – é ficar mais barato (mais lucrativo) e chamar mais a atenção. Para ficar mais barato, o periódico diminui de tamanho, encurta os textos e reduz o espaço.

O editor tem de sambar para encaixar o quebra-cabeça onde todas aquelas pressões, mais esta (física, do centímetro quadrado), são válidas. Fora isso, tem de agüentar as injunções do marketing – para quem o deus-mercado ou o deus-pesquisa é o único a ser louvado. Se o leitor de hoje, digamos, se fixa em celebridades, vamos espalhá-las por toda parte. No contra-ataque, as assessorias de imprensa fazem seu trabalho – isto é, tirando as pressões internas (do próprio veículo) sobre o editor, as empresas que trabalham com divulgação empurram seus releases e têm de emplacar matérias, afinal, para isso são pagas.

Sim, o quadro é caótico. Imagine, nesse contexto, a cabeça do pobre do editor, tendo de contentar a todos. Gregos e troianos, às vezes. Claro, nem todos os editores nominais editam de verdade. É bastante comum a figura do editor-celebridade, que, por mais que você ligue na redação, ele nunca está lá – perdido entre eventos, viagens e almoços intermináveis. E esses tipos são necessários; conferem glamour aos periódicos. Aí sobra para o editor-assistente ou para o editor-adjunto, que é quem edita de verdade.

Resumindo a ópera, o leitor. O leitor abre, no outro dia, o jornal ou a revista e não entende nada. O caderno ou a seção estão cada vez mais retalhados, coalhados de notinhas, entulhados de adendos gráficos, sem respeito pelo projeto, numa balbúrdia que em vez de captar a sua atenção só faz dispersá-la. Mais e mais. Por conseguinte, na próxima edição, o veículo vai ter de gritar ainda mais para se comunicar com o leitor e, novamente, vai ser tanto ruído e tanta estática que não vai conseguir nada… – e assim caminha a humanidade.

Lógico que, quando eu não conhecia esse jogo todo, como leitor sensível, apenas podia reclamar. Com o tempo, fui entrando nos meandros, ouvindo as confissões de editores vários, e tirando minhas conclusões pessoais. Não é fácil.

O editor contemporâneo manda muito pouco, essa é que é a verdade. Continuo cobrando, como é meu dever, mas tenho agora em mente as dificuldades. O jornalista, nessas grandes engrenagens, é cada vez mais uma peça num processo enorme, que acontece, independentemente do que ele possa pensar. Na Folha de S.Paulo se usa a expressão ‘operário da palavra’ e a imagem mais próxima, que me ocorre, é a de Charles Chaplin freneticamente apertando porcas, na cena clássica de Tempos Modernos. Conclusão: se você não quiser fazer, eles vão achar alguém que faça.

Primeira sangria

E os veículos que têm uma linha editorial, como funcionam? A partir de uma certa estatura não há como fugir dessa roda-vida descrita acima, mas, abaixo dela, há esperança. Outro dia, alguém me disse que existem dois caminhos para uma publicação nova: ou ela dá certo e é vendida para uma grande editora, entra na indústria e perde a sua cara; ou ela dá errado e, naturalmente, mais dia menos dia, acaba. Felizmente, o conceito de ‘dar certo’ é relativo e existe uma sobrevida entre, digamos, ‘dar quase certo’ e dar errado. Os editores se seguram nessa faixa.

Tenho captado, ultimamente, de editores da grande imprensa o desejo quase confesso de migrar para a imprensa dita alternativa. Estão, claramente, cansados da linha de montagem de revistas e jornais e, à procura de algo mais desafiador, estão dispostos a arriscar do lado de cá… E eu, que os tomava como modelos, não imaginava que poderia servir de modelo para eles, nesta altura do campeonato – mas é o que ocorre. De tanto repetir que a internet e as pequenas publicações são o novo mundo, pareço ter convencido uns três ou quatro.

A internet pode se apresentar como um paraíso, aparentemente, mas tem também os seus problemas. Por ser uma mídia que está se afirmando, sofre, antes de mais nada, de falta de credibilidade. Aliás, foi a própria imprensa (impressa) que bateu forte na internet em seus primórdios; mas eu não vou retomar essa história…

Um exemplo prático: quando uma empresa (de cultura, que é a minha área) se dispõe a anunciar, imagina anúncios em revistas e permutas em sites. Alguém lá atrás (e a própria internet tem culpa) convencionou que ações na web são feitas de graça mas que, para ações na imprensa impressa, é necessário pagar…

Outro exemplo prático: quando uma editora ou publicação em papel convida um site ou autor da internet para colaborar, inicialmente, não pensa em pagar – afinal de contas, na web, os projetos são majoritariamente colaborativos, no sentido de que a produção de conteúdo, sobretudo em publicações independentes, é feita na base do investimento, supondo uma remuneração ou um trabalho futuros, que compensem aquela aposta etc. e tal… –, então, você vai cobrar?

Conseqüentemente, esse estado de coisas interfere no trabalho do editor de internet (e até no de pequenas publicações). Vou falar do meu caso. Como na web, conforme foi dito, as colaborações normalmente não são pagas (leia-se: o colaborador não recebe pelo que escreve, porque geralmente o site não tem como pagar), o editor pode vir a se tornar refém de seus colaboradores – principalmente se a publicação estiver se afirmando ou em seu estágio inicial. Todos têm a mesma idade e todos querem palpitar sobre a (senão impor uma) linha editorial. Ainda mais no faroeste da world wide web, onde tendências duelam entre si mas ninguém sabe qual lei vai imperar. No embalo das atualizações sucessivas (às vezes desnecessárias), o editor publica o que chega e nada pode recusar.

Para complicar, paira a crença de que a internet deve, por definição, ser anárquica e que ao editor resta apenas a imolação no ‘altar de sacrifícios’ da liberdade de expressão. Particularmente, não acredito nesses preceitos e nem rezo por essa cartilha. A mim me parece suficientemente razoável que se eu acreditasse na consagração individualista dos blogs e na orgia perpétua dos comentários, teria, há muito, desistido do Digestivo Cultural (www.digestivocultural.com). Depois da primeira sangria aqui, em 2002, houve uma grita geral no sentido de se proclamar o fim das revistas eletrônicas e a apoteose dos blogueiros em fúria. Aconteceu, porém, que esses mesmos blogueiros, anos depois, quiseram virar papel e, ao tomar contato com livros, revistas e jornais, lá estavam, indefectíveis,… os editores.

Era das navegações… virtuais

Do lado dos leitores, ou leitores-colaboradores para especificar, a linha editorial vivencia uma situação cômica ou tragicômica, se se deixar levar. Como a internet, em geral, é muito indulgente e aceita qualquer coisa, alguns colaboradores virtuais acham que têm o direito de publicar em qualquer lugar. E que o editor tem o dever de aceitar. Para ir além, se nem na grande imprensa (que, como vimos, subsiste uma linha editorial muito tênue ou muito falha) os colaboradores sabem como se comportar, imagine na internet, onde a luta é de todos contra todos?

Um exemplo a mais: depois que o Digestivo participou com um suplemento da revista GV-executivo, têm aportado mensagens oferecendo artigos sobre temas como carreira, sucesso, motivação… E, outro dia, um sujeito apareceu com um diálogo muito mequetrefe num blog e, quando eu disse que aquilo era sobre comportamento e que eu não iria publicar, ele se voltou contra mim e bradou retumbante: ‘Você não publicaria o Verissimo, então’. Nem respondi…

Claro que o mundo não vai acabar. E claro que não penso que o jornalismo está morto. A situação é, efetivamente, calamitosa na grande imprensa, para o editor. E não estou afirmando isso por motivo de inveja ou porque quero que o circo lá pegue fogo. Estou apenas retransmitindo pontos de vista de gente de dentro (insiders) – como Israel do Vale, ex-editor-assistente do caderno ‘Ilustrada’, da Folha. Israel, atualmente no site Cultura e Mercado (http://culturaemercado.terra.com.br/), proclamou aos quatro ventos, na televisão, que enxerga uma grande mídia inevitavelmente condenada à ‘agenda’ e à ‘promoção de produtos’, e que avista uma internet promissora (hoje, a seu ver, muito mais interessante, por exemplo, em matéria de jornalismo cultural – sua área).

E, se no mainstream editorial, esse movimento de mercantilização e de agonia lenta do editor aponta para um horizonte tenebroso e inescapável, no off-mídia, tudo parece possível e nada parece provável. A bagunça de blogs, comentários e da permeabilidade de sites e portais vai acabar? Não. O editor vai ressuscitar das cinzas e colocar ordem na web? Também não. Vamos ter grandes polarizações, grandes concentrações, grandes conglomerados (como temos fora)? Já temos: Microsoft, Google… O sonho da internet acabou? Em parte. E o pesadelo da bolha, ainda continua? Sei lá.

E para usar uma metáfora bastante comum na Grande Rede, é como se tivéssemos voltado à era das grandes navegações. Virtuais… Uns poucos revelaram continentes e ganharam fortunas. A maioria ficou à deriva e teve seu barco afundado. Outros continuam… Descobrem uma ponta de terra, exploram, regressam à metrópole. Eu devo ser um desses loucos. Algo me diz, contudo, que os ventos finalmente sopram a favor do editor.

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Editor do Digestivo Cultural (www.digestivocultural.com)