Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A tentação da censura

No último dia 11, o premiê britânico, David Cameron, foi a público reclamar das mídias sociais. Sua frase: “O fluxo livre de informação pode ser usado para o bem mas também para o mal”. Ele cogitou bloquear acesso às redes para impedir mais saques. Não o fez. Quem o fez foi a polícia do Bart, metrô de San Francisco, na Califórnia. Bloqueou acesso aos celulares pelos passageiros para impedir que se comunicassem para organizar um protesto. Às vezes, a censura vem de onde menos se espera.

Cameron está certo: comunicação, digital ou não, pode ser usada para o mal. Temos uns 12.000 anos de história desde que o homem começou a viver em cidades e uns 3.800 desde que o rei babilônico Hammurabi apresentou suas leis de convívio social por escrito. Já se pensou muito sobre o assunto, já se viu de tudo. Protestos no metrô e uns dias de saque são, no mínimo, motivo fútil para coibir liberdades.

Não é que o direito à livre expressão seja absoluto. Nem o mais radical dos filósofos pró-liberdade achava isso. Era John Stuart Mill. (Britânico, diga-se, nascido em Londres como Cameron.) Mill não considerava que existissem ideias que devessem ser proibidas de circular. Ele via, apenas, que em algumas circunstâncias certas ideias extremas podem ser ruins. Desejar a morte de alguém numa conversa informal é de mau gosto. Pedir a morte de alguém perante uma massa em fúria na frente da casa do sujeito periga terminar com sua morte de fato. O contexto faz toda a diferença.

Alegação pífia

Mill tinha medo era de governo e de uma ditadura da maioria. Coisa de inglês de fins do século 19, no processo de inventar o que são nossas democracias modernas. As liberdades de qualquer um falar o que pensa e de qualquer grupo se organizar são o melhor antídoto para ambos.

Mesmo que a maioria pense diferente, um conjunto minoritário tem o direito de discordar. Sociedade livre é assim. Se governos são necessários para garantir essa liberdade com todos seus instrumentos, que vão da polícia ao acesso a hospitais e educação, eles também são uma constante ameaça. O governante tem poder. Uma hora, todos eles sentem aquela vontadezinha de coibir a conversa. Acontece com mais frequência entre os Chávez e Mubaraks do mundo. Premiês britânicos são também suscetíveis. E se sentem mal compreendidos quando alguém acusa o golpe.

Não há dúvidas de que houve crime cometido por saqueadores nas cidades inglesas. Cortar o acesso a redes sociais ou a telefones celulares pune todo mundo. Em situações extremas, esse tipo de medida pode impedir que gente se fira. Mas nem a monarquia ou o Parlamento estiveram ameaçados, o Estado de Direito permaneceu em pleno funcionamento.

Cameron só ameaçou. Na Califórnia foi pior. Há três anos, a polícia do metrô que interliga San Francisco às cidades vizinhas matou um cidadão desarmado. Quando o policial responsável foi absolvido pela Justiça, um grupo decidiu reclamar. Para impedir o protesto, alegando segurança, a mesma polícia do Bart cortou acesso às antenas de celular do subterrâneo. Todos os dias, centenas de milhares utilizam aqueles trens, incluindo gente que mora em San Francisco e trabalha no Vale do Silício. Logo onde.

Um meio, apenas

EUA e Reino Unido, com a França, inventaram o que chamamos de democracia. Sim, houve e há muita criança trabalhando em chão de fábrica, muita gente excluída. A História do mundo foi toda assim. O que essa mistura de democracia e capitalismo construiu lentamente, no entanto, foi um sistema que vai se moderando, se consertando, se ajustando. Põe prato de comida na mesa de gente pobre e cria novidades num ritmo acelerado.

John Stuart Mill tinha razão: por pior que seja a mensagem, tudo começa com a garantia de que podemos conversar, nos reunir e nos responsabilizar pelas consequências de nossos atos. Perante o crime há Justiça. Da próxima vez que alguém na Síria ou China cortar acesso à internet, dirá com cinismo que tem limite, e no Ocidente há quem concorde.

A tecnologia é só um meio. Mill também tinha razão em temer o ditadorzinho na barriga de todo governante.

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[Pedro Doria é colunista de O Globo]