Poderosos chefões do mundo, incluindo o presidente do EUA, ajoelharam-se diante do cadáver de João Paulo II. Inimigos milenares se cumprimentaram ali com fingida cordialidade. Fiéis de três grandes religiões – cristãos, muçulmanos e judeus –, de repente esquecidos de seculares divergências, foram a Roma homenagear o Sumo Pontífice. A realidade nua e crua do mundo, com guerras em todos os pontos do planeta, declaradas ou não, cedeu à fantasia.
Aliás, o que não é fantasia nesse prolongado funeral do último papa, que espíritos apocalípticos designaram como o antepenúltimo de toda a série? Lendas e profecias esquisitíssimas, forjada há séculos, dão conta de que o eleito, provavelmente um brasileiro, que não sabemos que nome adotará, será sucedido por Pedro II, este, sim, o último!
Agora, porém, vige ainda o tempo da transição, dominado por essa figura incrível, que somente a imaginação eclesiástica poderia engendrar: o camerlengo. O vocábulo tem remota origem germânica e radica-se em lides naúticas, metáforas muito presentes no linguajar da Igreja, de que são exemplos a nave de basílicas e catedrais, a barca de São Pedro etc.
O camerlengo está no poder desde que João Paulo II morreu e nele ficará até que o novo for escolhido. E aceitar. Pois não basta ser eleito, é preciso que aceite o resultado. Alguns eleitos, como sabemos, não aceitaram, obrigando os cardeais a escrutínios adicionais.
Vantagens da solteirice
O cenário deslumbrante dos funerais do papai grande, lembrando o surrealismo de Gabriel García Márquez, armado para exibição urbi et orbi e organizado por quem tem dois milênios de experiência no ramo, enseja vários temas e problemas para reflexão. E um deles é o do poder universal, a tentação de reunir todas as nações da Terra sob um único mando. Os poderes não seriam mais nacionais. Restaria um único poder universal, ao qual todos se submeteriam.
Obviamente, o modelo não seria a república, mas a monarquia. Mais do que isso, uma ditadura monárquica, semelhante à do príncipe Ranier III – cujo funeral foi esquecido pela mídia justamente por ter sido nublado por outro, patrocinado pela monarquia mais antiga e mais poderosa da Terra.
O mundo seria transformado num gigantesco principado de Mônaco. Só faltariam as bodas, que não fariam falta nenhuma. O celibatário número 1 do planeta sempre pôde dispensá-las, ainda que espíritos tidos por modernos insistam em reivindicar o fim do celibato. Para quê? Querem uma pequena idéia do que poderia acontecer? É só dar uma olhadinha no que aconteceu quando do triângulo Clinton, Hilary e Mônica.
Soa até inusitada e insólita a frase, mas ainda bem que o papa é solteiro, que solteiros são os cardeais, que solteiros são os bispos, que solteiros são os padres. Nessa hora grave em que o sigilo é requisito indispensável nas confabulações, quem poderia decretá-lo a todos os familiares? Nessas horas é que se pode mais facilmente concordar com o filme Parente é serpente (Mario Monicelli, Itália, 1993).
Célula-tronco
A imprensa, tratada a pão e água nessas horas, teria abundantes declarações dessas miudezas. Elidindo a essência do ato de informar, se limitaria à fofoca. E não é preciso muito esforço para ver que os veículos mais influentes hoje na mídia são aqueles que elegeram a fofoca como o grande tema e a razão de estarmos todos pautados pela Galáxia de Gutenberg. Ninguém mais conversa por conta própria. Parte sempre do que ouviu, viu ou leu.
A tentação de um poder único é recorrente na literatura do mundo. Dois grandes textos, entre tantos, a espelharam com maestria exemplar, constituindo-se em dois momentos com que sonha todo escritor, espécie de caminho da perfeição narrativa.
Um deles está no Evangelho. O Diabo oferece a Jesus três coisas em troca de sua submissão ao príncipe das trevas: transformar pedras em pão, voar como um pássaro, para evitar a queda, e colocar o mundo inteiro a seus pés, prostrado, adorando-o.
O segundo momento em que as três tentações foram narradas com perfeição está no episódio do Grande Inquisidor, de Dostoievski, páginas irrepreensíveis de Os Irmãos Karamazovi.
O mundo teria, então, um único e poderoso chefão. A tentação de unir todos os homens sob um mesmo poder político não é, como espíritos apressados gostam de supor, um projeto demoníaco. Foi defendido, entre outros, por Dante Alighieri, Tomaso Campanella e Emmanuel Kant.
Um de seus embriões, de suas células-tronco, foi engendrado pelos jesuítas que fundaram a República Guarani, nos séculos 17 e 18, em territórios hoje pertencentes ao Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina. O novo papa virá de um desses países?
PS. Versão resumida deste artigo foi publicada no Jornal do Brasil de terça-feira (13/4),