Para alguns comentários sobre o cenário de violência e criminalidade que a mídia e, dentro dela, o jornalismo, constata a cada dia, recorremos a John Locke (1632-1704), que em 1689, ao escrever sua famosa Carta sobre a tolerância, observava que:
‘O Estado é uma sociedade de homens constituída unicamente com o fim de conservar e promover os seus bens civis. (…) É dever do magistrado civil assegurar a todo o povo e a cada súdito em particular, mediante leis impostas igualmente a todos, a boa conservação e a posse de todas as coisas que se relacionam com esta vida’
De lá para cá, consolidam-se estados nacionais, desenvolve-se a sociedade industrial, inicia-se o processo das revoluções emancipatórias e é inaugurada a era dos direitos civis. No rastro desta surge a liberdade de informar e de ser informado, de comunicar e de ser comunicado no já amplo espectro das sociedades democráticas. E surge a idéia de representação de um Estado que deveria ser de todos, ou seja, deveria cultivar e consolidar a cidadania… na qual cada indivíduo é também um cidadão.
A intolerância, que atende também pelo nome de violência, crimes, exclusão e afins, mede a força de um Estado e pode ser sinalizador da falência representativa dele perante o cidadão. O fracasso de campanhas midiáticas contra a violência e criminalidade, com um viés meramente reordenador da vida social, também parece atestar a perda de representatividade de mídias perante grande parte do público. É só olhar atualmente alguns dos conteúdos televisivos e várias coberturas baseadas em critérios de audiência – e não de rentabilidade social – que percebemos a gradativa perda na crença de que campanhas e informações funcionam, em grande parte, como esclarecimento social. É uma pena. Mas, de outro lado, novas mídias surgem e auxiliam o cenário de compreensão do entorno. É também uma perspectiva nova e com alguma esperança.
Formas criminosas
Voltemos a Locke. A intolerância, tão bem tratada por ele faz mais de três séculos, ocorre no terreno material e imediato das relações sociais, com desdobramentos em ações que efetivamente prejudicam pessoas ou grupos e que geram violência. Mais uma vez, Locke recorre ao Estado. Ele lembra as assembléias, em que as facções de tal modo se dividem e criam intrigas ou ‘conciliábulos’ que a intolerância cresce desmedidamente. Por isso, defende a criação de uma lei da tolerância ‘mediante a qual todas as igrejas seriam obrigadas a ensinar e a pôr como fundamento da sua própria liberdade que os outros, ainda que divirjam de si em matéria de religião, devem tolerar-se, e que ninguém deveria ser constrangido pela lei ou pela força no campo religioso’.
Se olharmos à volta, constataremos, sem muito esforço, que o mundo está constituído por pequenas ou grandes ‘teologias’ – não só as religiões tradicionais –, por crenças e valores que se julgam universais ou válidos de antemão e para sempre. Neste cenário, é necessário que os processos comunicativos sejam ainda mais fortalecidos para que haja um artefato cultural que nos una como espécie e que permita convergência mínima ao redor de valores morais ‘pétreos’, que devem ser patrimônio de toda a humanidade, sob pena da banalização do mal se tornar valor compartilhado em amplos espectros sociais.
Locke chega a um impasse ainda contemporâneo. Em nome da igreja, da religião e de diferenciadas crenças, as pessoas agem concretamente, seja de forma inconsciente ou movidas pela convicção interior. Neste sentido, cometem atos arbitrários, violentos, cruéis. Muitas vezes, a aplicação da convicção íntima – ou da ‘consciência interior’ –, não ultrapassa a mera concepção moral e política particular de como o mundo deve andar. Por isso, a intolerância tem que ser parada (ou intolerada), contraditoriamente, pela mediação da força jurídica que assegura, pela coerção moral e legal, a tolerância. É daí que surge e se mantém a relevância da mediação jurídica como norma reguladora. Mas, ao mesmo tempo, o homem é um ser que sempre tensiona e ultrapassa o âmbito da legalidade para, com base na legitimidade discursiva e de ação, propor e/ou impor novas normais morais, que redefinem a própria esfera jurídica. Sem os processos de comunicação, tal perspectiva cai no arbítrio individual ou grupal, cai em pequenas ou grandes ‘teologias’, cai em dogmas sociais que empurram determinadas posições, discursos e atitudes para um incontornável antagonismo. Quando a mídia fracassa, parece fracassar a vida pública. Quando a mídia fracassa, parece fracassar o Estado.
As manifestações da intolerância podem ser visíveis, como queimar uma igreja ou fuzilar crianças em uma escola; ou sutis, como negar um emprego, atribuindo para isso uma desqualificação profissional que não existe e que, na verdade, esconde a discriminação de ordem religiosa, moral ou ideológica.
É neste complexo cenário que nasce o molde daquilo que pode ir para qualquer lado, inclusive para a malignidade, conceito essencialmente humano. Manifestada em algumas de suas formas criminosas ou violentas da contemporaneidade, pode significar que uma parte da sociedade já a adotou como padrão contemporâneo.
Disputa de valores
Cabe à mídia efetivamente esclarecer. Não é pouca coisa, já que é necessário também abandonar interesses meramente particulares e se colocar como adepta clara de valores universais que apontem o caminho da realização humana social, material e psicológica. Isto é coisa que não combina, em variadas e múltiplas situações, com lucro a qualquer custo; com a audiência como critério único de pautas e de longevidade delas; com o info-entretenimento que cada vez mais perde o info e se torna apenas entretenimento. Até que a violência bata à porta.
Se tolerar significa compreender e intolerar defender valores universais, a mídia tem papel central nos debates plurais de nossa época. E ele é preponderante em relação aos vários constrangimentos de ordem econômica, política e ideológica atuais. Para se preservar com legitimidade social, é necessário reciclar abordagens sobre novos fenômenos comportamentais. Na base de tal reciclagem estão os protagonistas envolvidos – com distintos matizes ideológicos e comportamentais – e uma disputa de valores a serem discutidos, defendidos, consolidados e mantidos em relação ao presente e ao futuro.
É uma pauta sem lucros, a não ser o da sobrevivência ética.
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Jornalista, docente da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do objETHOS