A grande mídia sempre trata a questão da carga tributária do ponto de vista da ineficiência do Estado – que não consegue prestar os serviços públicos correspondentes à arrecadação fiscal – e nunca, ou raramente, trata da sonegação sistemática dos tributos por uma parcela significativa das pessoas jurídicas e físicas.
É rotineiro ler, ouvir e ver matérias jornalísticas sobre a elevada carga tributária que se paga no Brasil. Quem é assalariado, ou presta serviços ‘de produção intelectual’ como pessoa física, sabe perfeitamente o que carga tributária alta significa. Dependendo do valor do salário ou da prestação de serviço, pode-se chegar perto dos 40% de tributos.
Para quem paga seus impostos corretamente, no entanto, sempre fica a questão: e os milhares, milhões de sonegadores sistemáticos de impostos – pessoas físicas e jurídicas?
O intrigante, no cotidiano do cidadão comum, é que rotineiramente testemunhamos situações em que o instrumento necessário para o recolhimento dos tributos de pessoas jurídicas (empresas) – a nota fiscal – não é emitida ou, quando é, expressa um valor inferior àquele da transação comercial efetuada. Há regiões do país onde nota fiscal é quase sinônimo de palavrão e aquele que a solicita corre o risco de ser considerado inconveniente. Sem mencionar o tamanho de nossa economia informal, sobre a qual não incide mesmo qualquer tributação.
Pesquisa abrange 3.359 municípios
Em tese, independente do tamanho da carga tributária, se houver sonegação sistemática, a arrecadação do Estado – e, portanto, sua ‘eficiência’ – será sempre inferior ao necessário e ao esperado. E pior: a tributação incidirá – e, portanto, penalizará injustamente – os que não têm como escapar das elevadas taxas tributárias.
Essa longa introdução vem a propósito da cobertura simplificadora dada à pesquisa realizada pela Escola de Economia de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas, sobre a relação entre ‘a eficiência de arrecadação das cidades com os índices de economia informal’. Aos municípios cabe a arrecadação de tributos como o Imposto sobre Serviços (ISS), o Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU), o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e outras taxas definidas em cada cidade.
O estudo concluiu que, dos 3.359 municípios pesquisados, somente 95 – ou 2,82% – possuem sistemas de arrecadação ‘eficientes’. Assunto foi capa do Estado de S.Paulo – e somente dele – no dia 2 de abril de 2007. A manchete, no topo da primeira página, era ‘Arrecadação só é eficiente em 2,8% das cidades’ e o subtítulo ‘Cobrança falha eleva carga tributária’. Na página interna a matéria foi titulada ‘País tem apenas 97 municípios com arrecadação eficiente’.
Eficiência ou sonegação?
Onde fica a responsabilidade cívica – e até criminal – daqueles que não pagam os impostos que devem? Um outro enquadramento poderia ter gerado uma manchete assim: ‘Contribuintes sonegam impostos em mais de 97% das cidades brasileiras’.
O texto da matéria do Estado de S.Paulo diz que a pesquisa é ‘um exemplo da falta de cuidado e interesse dos órgãos para diminuir a carga tributária no país’. Mas, logo em seguida, revela que a classificação da eficiência de arrecadação das cidades tomou como base critérios como grau de informatização da cidade; nível de urbanização; densidade residencial; número de pessoas pobres; renda per capita e transferências do governo federal. Qual desses critérios estaria relacionado com ‘falta de cuidado e interesse’ dos governos municipais?
Em outra parte, o estudo – e a matéria – afirma que ‘quanto maior a renda per capita, menor tende a ser a informalidade, mas a eficiência de arrecadação também é menor’. Será que se trocarmos, na frase, ‘eficiência da arrecadação é menor’ por ‘sonegação fiscal é maior’ não estaríamos mais próximos da realidade do país?
Forma simplificadora
Por uma coincidência, a coluna de Daniel Castro na Folha de S.Paulo do mesmo dia (2/4) tem como manchete ‘Horário político custará R$ 471 milhões em 2007’. O que significa isso?
Significa que a Receita Federal estima que deixará de arrecadar 471 milhões de reais em impostos devido à compensação a que as emissoras de televisão e rádio têm direito pela exibição de propaganda política. A Lei Eleitoral determina que, no cálculo do Imposto de Renda, as emissoras podem excluir do seu lucro líquido o correspondente a 80% do que cobrariam caso o espaço da propaganda política tivesse sido comercializado como publicidade. Essa renúncia fiscal não se refere apenas ao Horário Eleitoral Gratuito, mas inclui também as inserções avulsas e os programas dos partidos exibidos ao longo do ano.
O Horário Eleitoral Gratuito, como se vê, não é exatamente ‘gratuito’.
A questão da carga tributária e da arrecadação fiscal é complexa e pode envolver, dentre outros, isenção fiscal, sonegação sistemática, ineficiência na gestão da coisa pública e, eventualmente, até ‘falta de cuidado e interesse dos órgãos para diminuir a carga tributária no país’.
O que fica claro, todavia, é que a forma simplificadora como a questão é rotineiramente tratada pela grande mídia não contempla todos os lados envolvidos. O padrão de tratamento esconde um preconceito anti-Estado e reduz uma tradição cultural de sonegação de impostos a um problema apenas de ineficiência da gestão pública.
******
Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: crise política e poder no Brasil (Editora Fundação Perseu Abramo, 2006)