‘Lá vem mais uma legião de bárbaros./ vamos fechar as portas e as janelas,/ antes que queiram saquear de novo!’ (Imre Madach, em A Tragédia do Homem, Cena VII)
Flagramos a imprensa brasileira, na semana que passou, num transe doloroso entre a tragédia do indivíduo e a tragédia da humanidade, entre a confirmação de que a atividade humana é responsável pelo aquecimento global, e a repetição da verdade segundo a qual não há história de crueldade que o ser humano não seja capaz de superar. E outra vez nos deparamos com a síndrome que condiciona todo o noticiário: somos incapazes de identificar a circunstância no quadro geral, de separar o fato em si do entorno social e econômico que o cerca, de dar a cada história sua própria dimensão.
Na dúvida, vamos colecionando declarações e opiniões, na esperança de que, de alguma dessas frases, se faça a luz que nos ajude a entender aquilo que nos choca.
É o caso do menino que foi barbaramente assassinado no Rio, por delinqüentes rastaqüeras, que o arrastaram preso ao cinto de segurança do carro. Segundo as declarações noticiadas dos criminosos, eles pretendiam vender as rodas dos carros da família. É o caso da família que foi queimada em seu carro após assalto, numa outrora pacata cidade do interior paulista, dois meses antes. É a dolorosa tragédia do jovem casal que foi assassinado por um grupo de celerados quando acampava perto da capital paulista, em 2003.
Conhecimento técnico
Atrocidades sempre vão acontecer, aqui e na África ou nos Estados Unidos. O que não pode seguir igual é essa impossibilidade de um diálogo entre a imprensa e a sociedade, do qual seja possível tirar algo mais do que manifestações de indignação e fúria vingativa. Ou de análises intelectuais tão assépticas que parecem ignorar a humanidade dos protagonistas.
Não se trata simplesmente, como querem fazer crer alguns comentários postados por observadores deste Observatório, de tornar a legislação penal mais rigorosa, ou de construir sistemas prisionais ainda mais punitivos, como se os sentenciados vivessem em regime de mordomias. Tampouco podemos ficar repetindo platitudes sobre a raiz econômica da escolha individual de um criminoso sobre o destino de uma vítima sob o seu poder.
Temos que buscar respostas mais amplas e duradouras à margem do fato pontual, da tragédia do dia, na convicção de que nossa sociedade é capaz de encontrar uma solução para suas crises sem que os cidadãos tenham que abdicar de direitos arduamente conquistados.
Esse é um papel que a imprensa poderia estar cumprindo, diariamente, sem precisar ser pautada por um crime ainda mais horrendo. Dessa incapacidade para interpretar a realidade e garimpar boas medidas para melhorá-la é que tratamos neste espaço.
Um exemplo positivo do que pode ser feito, ainda que em escala emocional mais branda, é apresentado pela permanência das atenções nas obras do metrô de São Paulo após o incidente de 12 de janeiro, o que permitiu aos jornalistas acompanhar a denúncia do inspetor Nelson Augusto Damásio sobre falhas estruturais na estação Fradique Coutinho, na mesma Linha 4 em construção.
A volta da obra ao noticiário, ainda em circunstância negativa, cria a oportunidade para que empreiteiras e governo, sob o olhar da imprensa, ofereçam mais do que indenizações e condolências às famílias de vítimas. Ao manter aceso o interesse pelo tema da segurança em grandes obras civis, a imprensa prepara suas equipes para entender melhor os meandros dos processos de licitação e permite que alguns jornalistas acumulem conhecimento técnico sobre grandes construções.
Esse conhecimento fez falta, por exemplo, durante as polêmicas obras de túneis ao longo das Avenidas Rebouças e Brasil, em São Paulo, durante o mandato da ex-prefeita Marta Suplicy, quando aspectos técnicos foram claramente politizados.
Mar de emoções
Com o cuidado de não estender o suplício das pessoas que perdem entes queridos em acontecimentos de ampla repercussão, é preciso que a imprensa mantenha por mais tempo a sociedade acordada para a necessidade de entender e prevenir, quando possível, tragédias como a que vitimou João Hélio Fernandes Vieites, de 6 anos, no Rio, ou a família do menino Vinícius de Oliveira, de 5 anos, queimado vivo em Bragança Paulista. Nos dois casos, a intenção de ladrões comuns, até então insignificantes figuras nos registros policiais, derivou da obtenção de um pequeno ganho com um roubo para a consecução de crimes bárbaros.
Da mesma forma como a parcela brasileira de responsabilidade no aquecimento global tem que ser mantida nas pautas, como tema vinculado ao noticiário econômico e de negócios – para a cobrança constante de legisladores e empresários por medidas de contenção do desastre ambiental –, também é preciso que a violência seja tratada permanentemente, como as demais mazelas da nossa sociedade, como um mal que necessita ser curado.
Esfriado o emocionalismo, é preciso que em algum momento a imprensa tome a iniciativa de conduzir um debate sobre as chances que teria o Brasil de criar instrumentos capazes de reduzir esse tipo de ocorrência. Se a humanidade está condenada a repetir eternamente – como faz supor a obra-prima de Imre Madach, A Tragédia do Homem – um enredo de escolhas trágicas, pelo menos deveríamos ter o consolo de haver construído instituições mais eficazes para a prevenção e a punição desses crimes.
Do jeito que as coisas são feitas, a tentativa de discutir as raízes da violência num mar de emoções apenas produz o repetitivo confronto dos que pedem vingança e mais sangue com aqueles que ainda sonham com uma sociedade mais fraterna e solidária, com respeito aos direitos fundamentais. Levada aos limites da racionalidade a cada crime hediondo, a sociedade corre o risco de um dia romper seu compromisso com a civilidade.
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Jornalista